sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Hoje não quero que venhas

Não venhas.
Hoje não quero que venhas!

Hoje quero solidão.
Hoje quero abstracto, absurdo, infinito…
Hoje sou uma folha vogando sem vida.
Hoje não sinto: penso. Ou penso sentidamente.
Oco de ser-se ou ser-se de oco.
Que importa?

Vejo-te? Conheço-te?
Não, hoje não te conheço.
Cada traço do teu rosto fere os meus ouvidos surdos
Mudos aos gritos que os teus olhos lançam.
E és-me tão estranho!

Penso-me? Odeio-me?
Não, não me odeio.
Para odiar era preciso sentir e eu sou impotente de sentimentos.
Esqueço-me nos pensamentos que já olvidei
E vejo-me reflectida num espelho quebrado.
Sou estilhaço de vidro amordaçado.

Nada é tudo e tudo é nada.
Não sei bem. Palavras-jogos.
Palpar o impalpável e esquecer que existo.
Ilusão na hora de iludir. Os outros. A mim?
Colcha de quadrados coloridos. Percorrer espaços.
O Eu fica tão longe que não o alcanço…

Sentir-me. Quero sentir-me!
Ah marmórea máscara que te transformaste em rosto…
Arrancá-la? Inútil esforço. Ela é face de gesso.
Face estúpida e rígida, parada a contemplar,
Absorta no inconsciente êxtase que perdura.

Uma lágrima. Uma lágrima!
Sentida? Não: pensada.
Não sei chorar. Sei fazer deslizar água salgada.
Ruas de amargura, com leitos estruturados
Visíveis aos outros, invisíveis à minha dor.
Cristais salinados de mundos interiores.

Não fales. Não digas nada!
Tuas palavras não escutadas
Ecoam nas profundezas das cavernas.
Imensidões de sombras e orifícios de possibilidades.
Imensidões.
E eu não sou imensidão. Sou apenas mármore.
Daquele mármore branco e baço das estátuas de jardim.
Estátuas de frio, despidas de afectos.

Clamas por humanidade.
Mas eu não sou humanidade, já disse!
Sou o mármore abandonado que o verde começou a cobrir,
Sujando de tempo a hirta presunção de humanidade.
Daquele mármore impávido das campas fúnebres.
Morto. Mais morto do que os corpos que encobrem.
Frio. Mais frio do que as gélidas manhãs de Janeiro.




Continuas aí? Ainda?
Não vês que sou mármore?!
Neste esculpido corpo, erguido ao tempo, mudo e quieto,
Não há coração. Não te iludas!
Queria poder-te chamar querido, mas meus lábios são de gelo.
Minhas mãos crispados rios, encapelados de tempestades.

Eu já não vivo: penso.
E nada pior do que pensar.
Máquinas e ferrugem constantemente oleadas com um odioso visco:
Mistura de fel, progresso e nada.
Roldanas de intrincados mas e porquês e ses.
Ausências de alavancas de corpo e emoções.

Estou aqui. Fico aqui. Imóvel.
Erguida ao ar, esperando o Outono chegar, para declinar Verões
E morrer no lodaçal do Inverno que há-de vir.
Nada e silêncio, que é o mesmo que tudo.
E este frio da ausência, nada o pode quebrar.
Nem a vontade que não tenho,
Nem o grito emudecido que ecoa dos escombros.

Não me olhes assim! Não suporto que me olhes assim!
Aí há amor: aqui há um deserto que cresce.
Areia. Seca areia de um sol escaldante de vidas ressequidas.
Mármore que fere a sensibilidade dos não marmóreos,
Tornando a paisagem árido-inóspita na qual tudo morre de desalento.

Há sempre um oásis, dizes tu.
Pois eu digo-te: aqui não há nada!
Somente uma desolação irreal
Porque incrivelmente real.
Sede. Aqui há sede. Sede de sentir, não de pensar.
Morro a cada momento sem nunca ter nascido.
Desfaleço, sem nunca ter feito outra coisa.

Não te alcanço. Como estás longe!
Corro, mas como uma miragem, desvaneces-te quando chego.
De mim, sobra apenas o não sentir que ao pensar pesa.
Chumbo largado sobre o cristal-porcelana
Sem réstia deixar na poeira do caminho.

Ausência de dor. Ausência que dói.
Não no sentir, mas no pensar.
Ruínas, construções novas de monumento esquecido
Hoje homenageado, sem ninguém a aplaudir.
Mármore.

Não venhas.
Hoje não quero que venhas!


Mais um dos poemas do livro de poesia que aguarda publicação «Em Carne Viva»

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