sexta-feira, 29 de março de 2013

Retoma

Caros amigos e leitores,
devido ao muito trabalho a nível profissional e a problemas de saúde familiares tenho descurado este blogue.
Deixei passar datas importantes como o Dia Internacional da Mulher, O Dia da Poesia... e tantos outros que mereciam um post.

Regressei hoje para desejar a todos uma Boa Páscoa, plena de benções e da realização dos desejos mais íntimos de cada um.

Aproveito para compartilhar a minha última crónica escrita para o jornal da escola onde trabalho sobre o tema literacia.


Que cena, meu!

Por Ana Paula Mabrouk
«Devido ao facto de vivermos numa sociedade da informação, que se começou a falar de um novo tipo de analfabetismo afectando a população que, apesar do aumento das taxas e dos anos de escolarização, evidencia incapacidades de domínio da leitura, da escrita e do cálculo, vendo por isso, diminuída a sua capacidade de participação na vida social. Este novo “analfabetismo”, dito funcional, teria a ver com aprendizagens insuficientes, mal sedimentadas e pouco utilizadas na vida.

Entende-se por literacia como a capacidade de cada indivíduo compreender e usar a informação escrita contida em vários materiais impressos, de modo a atingir os seus objectivos, a desenvolver os seus próprios conhecimentos e potencialidades e a participar activamente na sociedade. A definição de literacia vai para além da mera compreensão e descodificação de textos, para incluir um conjunto de capacidades de processamento de informação que os adultos usam na resolução de tarefas associadas com o trabalho, a vida pessoal e os contextos sociais.» in http://literaciadainformacao.web.simplesnet.pt/Literacia_da_informacao.htm


Dado que está o recado de forma politicamente correta, vamos agora ao exemplo da vida prática e à sua análise de forma politicamente incorreta.

Para quem não sabe ainda, adoro esplanadas. Há alguma coisa na cultura do exterior, em roda de uma mesa e de um café, que ilumina radicalmente o meu dia. Inventei mesmo um verbo maravilhoso para a ação de adorar o sol desta forma tão mediterrânica: lagartar. Ora, estava eu lagartando um dia destes num dos meus locais de eleição, senão quando fui ouvinte acidental de um texto deveras admirável. Um empregado de mesa dissertava com um seu colega de trabalho sobre a experiência de ter assistido a Django Libertado, filme de Quentin Tarentino, protagonizado por Jamie Foxx.

Desiluda-se quem pense que dissertava sobre a polémica da escravatura que tanto tem incomodado os EUA, país que lida muito mal com o seu passado histórico e com o presente dos outros países. Ou quem pense que o tema era a questão da violência nos filmes de Tarantino, que a mim (se calhar, só a mim) parece inofensiva face à escalada de maníacos adolescentes armados que têm dizimado escolas e universidades nos últimos anos pelo país fora. Mas isso são contas de outro rosário, ou se calhar de outra crónica futura.

Não, não era nada tão elevado. Da boca deste estudante universitário (vim a saber mais tarde) saiu um discurso que vou tentar reproduzir o mais fielmente que sou capaz. Era algo assim: «Ontem foi ver aquele filme daquele gajo negro que gramo bué. Daquele preto de filmes de ação e o caraças. Brutal, meu! Brutal! Tem umas cenas memo memo fixes. O gajo dá-lhe bué e malta curtiu …estás a ver? A garina ao meu lado ainda se meteu a mete nojo e começou a falar umas cenas maradas mas eu cá amandei-a fechar a matraca. Quem não gosta, não come, olha então! Armada em finória c’umas palavras de sete e meio. É mesmo brutal, meu! Tens que ir ver. Cenas memo do caraças!»

Nem sei memo por onde hei-de começar! Se pela análise lexical, morfológica ou ideológica…

Analisemos, em primeiro lugar, as ideias (ou a falta delas!). Perceberam alguma coisa? Eu cá, que nem me considero burra de todo, percebi que o rapaz foi ver o filme Django Libertado e que teve um desaguisado com outra espetadora. O que ele achou do filme, não sei… Brutal é um adjetivo que qualifica uma pessoa bruta, desumana, violenta ou selvagem. Não me parece que era o que o rapazola tinha em mente. Parece-me mais que ele estava a classificar o filme como maravilhoso, fantástico, bem elaborado, magnificamente filmado. Quanto à questão da classificação dos outros seres humanos, enfim, o vocabulário não melhora substancialmente. O gajo (Jamie Foxx entenda-se) não haveria de achar graça nenhuma aos epítetos negro e preto num país que cunhou a expressão “afro-americano” como a única socialmente aceitável. Quanto à garina, se era açoriana ou não, não sei, mas fechar a matraca não me parece que deva alguma coisa à elegância. Deste modo, hás-de ter muitas namoradas…Hás de. Hás de… Palavras de sete e meio, também desconheço o significado, mas, pela quantidade de dissílabos usados, devem ser todas aquelas que tenham três ou mais  sílabas. Aquelas memo difíceis, estão a ver?

No que se refere ao léxico, verifica-se uma repetição dos termos brutal, gajo, cenas, memo e esse termo tão incontornável – caraças! Ora, espremidito o discurso, o domínio vocabular deste estudante universitário (convém não esquecer) pode ser comparável ao de um dealer da margem sul lisboeta que desistiu da escola após a quarta classe tirada aos tropeções. Ai, Nuno Crato, se tu soubesses como anda a deseducação neste país…

A análise morfológica é a minha favorita, admito! Adoro o uso de “amandei-a”. Das duas, uma: ou o rapaz é possuidor de uma força hercúlea e agarrou na rapariga e arremessou-a pela sala fora ou então mandou-a calar. A conjugação verbal deve ser eu amando-a, tu amanda-la, etc. Já quanto à palavra memo deve ser o contrapeso de amandar: uma palavra ganha letras, outra perde. Isto tudo numa sequência de frases com conjunções coordenativas básicas (e, mas, que), mas com muita emoção. Veja-se a quantidade de pontos de exclamação e de interrogação?!

Para terminar tenho um recado para este estudante universitário: «Caro rapaz, deves continuar a ir ver cinema pois só te faz bem à cultura. Aconselho também ir às aulas, de vez em quando, pois pode ser que aprendas novas palavras muito úteis na tua vida futura. Um dicionário monolingue de português também dava jeito.» No entanto, como temo não ser entendida, vou traduzir: «Garino, meu: bué de filmes! Essas cenas são brutais! Aulas – estás a ver? – só um coche, ficam bem no emprego da malta, ok? Um calhamaço de palavras de sete e meio é que era do caraças!»