O SR. FELIZ
Era Domingo de manhã. O dia amanhecera envergonhado, com um sol pálido a espreitar por entre as nuvens que se espraiavam num céu de pastel. Fiquei mais uns minutos na quentura dos lençóis, tentando espantar a preguiça e ganhar coragem para enfrentar o dia.
Domingo era dia de desporto. No dia do Senhor, penso que Ele aprovaria que os seus seres imperfeitos, sacudissem o mofo da semana, desemperrassem as articulações e arejassem as ideias. Isto, claro está, se Ele pudesse opinar nos dias que correm.
Naquele dia estava particularmente abespinhada. Tinha tido uma semana difícil, num mês difícil, quase no final de um ano difícil. Sentia-me submersa num mar de sargaços, sem conseguir manter-me à tona por muito tempo. Faltava-me o ar e a vida pesava-me como a pedra gigante de mármore entre as mãos de Sísifo. Um eternizar de dias iguais, sem planalto no cimo da montanha, no qual repousar das atribulações. Apetecia-me gritar «Por favor, parem o Universo. Quero apear-me.» Mas como o Universo sofre de deficiência auditiva, em vez de me apear, meti as pernas ao caminho e dirigi-me para o choupal.
Era um ritual que cumpria religiosamente desde há alguns anos. Começara por necessidade física e tornara-se um vício, não só do corpo, mas da mente e da alma. Aproveitara aquelas caminhadas para higienizar os pensamentos e depurar a linfa.
Entrei no percurso do costume e estuguei o passo, olhando para o relógio para cumprir o tempo que a mim própria me impunha. Comecei por programar a agenda da semana, revi os compromissos assumidos e até preparei as refeições da semana. Em seguida, a mente vagueou para os planos sempre adiados, as dificuldades económicas, os desgostos afectivos de uma vida já madura.
- Posso acompanhá-la, companheira?
A voz fez-me estremecer, tal era o alheamento em que me encontrava. Não vira os grupos que corriam à minha frente, os amigos da bicicleta em sentido contrário, os colegas de caminhada, de rosto já registados, os dois cavalos imponente, dos quais me desviei instintivamente. Caminhava apressada, marcando o ritmo de forma mecânica, alheia a tudo em meu redor. Um voz assim, vinda do nada, causara um sobressalto que se traduzira num tremor involuntário.
- Assustei-a, menina?
- Desculpe, estava absorta nos meus pensamentos e não o tinha visto….
- Pois eu já a vi muitas vezes aqui a esta hora. Tem uma passada semelhante à minha.
- Peço desculpa, uma vez mais, mas quando começo a caminhar, não vejo nada, nem ninguém…
- Espero que não se ofenda com a minha proposta.
Olhei-o de soslaio. Aparentava aí uns sessenta e muitos anos, num corpo admiravelmente saudável. Estava equipado a rigor, desde as sapatilhas ao boné de pala, em voga. Os óculos escuros conferiram-lhe outro toque de modernidade.
- De todo. Faça favor.
- Sabe, menina, na minha idade a companhia é um luxo e uma alegria.
- Caminha sozinho?
- Fisicamente sim, mas sou um homem de sorte. Nunca me sinto só.
- Isso é bom…
- Há por aí tanto jovem velho e eu que já sou velho, sinto-me cada vez mais jovem.
- O senhor também não é tão velho assim!
- Que idade me dá? – inquiriu com ar matreiro.
- Não sei…Talvez sessenta e tal.
- Oitenta e dois já cá cantam – rematou cheio de orgulho
Parei de repente, abri os olhos e a boca de espanto e ia para dizer uma banalidade qualquer, mas nenhum som me saiu da garganta.
- Já estou habituado a essa reacção. Ao princípio, ninguém quer acreditar, mas olhe que é verdade.
O passo certo e firme com que me acompanhava, a vitalidade das suas palavras e aquele sorriso maroto escondiam um verdadeiro tesouro de longevidade.
Nem dei pelo passar do tempo no restante percurso. Estava embevecida com a história de vida de um estranho que, generosamente, decidira partilhá-la comigo. As pessoas mais velhas são de palavra fácil e quando sentem que são ouvidas, são de trato afável. Aquele homem tinha uma história de vida incrível.
Tivera um filho na Guerra do Ultramar, na Guiné, que regressara amargo e revoltado com a vida. Nunca mais se integrara na vida civil do pós 25 de Abril e um dia o pai fora encontrá-lo fardado a rigor, com um tiro na cabeça. Abraçou-o fortemente contra o peito, fez-lhe um funeral a preceito e nunca se insurgiu contra aquela partida tão contra natura. Ninguém deve julgar os outros, pois ninguém conhece os seus demónios. Cada um de nós tem de travar as suas batalhas e o desfecho é pessoal e intransmissível.
Anos mais tarde perdera a casa numa derrocada na baixa de Coimbra. Fora um daqueles Invernos impiedosos, que arrasam edifícios de tijolos e de carne e osso. Mudara-se para um pequeno apartamento, parcialmente comprado com o dinheiro do seguro.
- Foi pelo melhor – explicou. No sítio onde morava, já todos os rapazes da minha idade tinham morrido e eu não tinha com quem conversar. Agora tenho sete andares de vizinhos com quem dar à língua.
Há dezassete anos morrera a mulher com uma complicação respiratória, após uma pneumonia. Reformara-se um ano depois e a partir de então passou a ir todos os dias ao cemitério. Não para chorar as partidas, mas para pôr a conversa em dia. Leva sempre uma flor que deposita junto à fotografia, senta-se na berma da campa e conversa longamente com ela. A cumplicidade de uma vida mantivera-se intacta. Passa depois, na campa do filho e dá-lhe notícias dos netos.
Aos setenta anos diagnosticaram-lhe cancro da próstata. De iniciou sentiu-se abalado, mas desde cedo teve a certeza que ia vencer a doença. Fez muitos amigos no hospital e entre os sobreviventes formou um grupo de convívio que, todos os domingos, vai almoçar junto.
- Depois disto decidi começar a praticar deporto e eis-me agora aqui a falar com a menina. Sou um grande tagarela, não sou?
Durante todo o relato pensava em todos aqueles que passam a vida inteira a queixar-se dos pequenos obstáculos diários com os quais se deparam. Pensava naquelas pessoas lamurientas e envinagradas que não conseguem retirar lições de vida da adversidade e chegam ao fim do seu percurso sem nada ter aprendido.
Quanto a mim, havia chegado ao fim do meu percurso de hoje. Transpirava abundantemente, mas nem dera conta do meu esforço físico. Bebia as palavras simples e sábias de um companheiro de caminhada, que tinha muito para me ensinar.
- Foi um prazer ouvi-lo, Sr?
- Sr. Feliz. É assim que toda a gente me chama.
Sorri por fora e por dentro. Não havia decerto nome mais apropriado!
O Sr. Feliz despediu-se gentilmente e seguiu o seu caminho. O meu seguia em sentido contrário. Lembro-me de olhar o céu encastelado e de formular um pedido: «Por favor, parem o Universo. Quero entrar outra vez!» Tive consciência, naquele exacto momento, de que havia muito terreno ainda a percorrer. O Universo certamente tinha um plano secreto para mim e ainda não tinha cumprido o meu papel naquela longa viagem.
Era Domingo de manhã. O dia amanhecera envergonhado, com um sol pálido a espreitar por entre as nuvens que se espraiavam num céu de pastel. Fiquei mais uns minutos na quentura dos lençóis, tentando espantar a preguiça e ganhar coragem para enfrentar o dia.
Domingo era dia de desporto. No dia do Senhor, penso que Ele aprovaria que os seus seres imperfeitos, sacudissem o mofo da semana, desemperrassem as articulações e arejassem as ideias. Isto, claro está, se Ele pudesse opinar nos dias que correm.
Naquele dia estava particularmente abespinhada. Tinha tido uma semana difícil, num mês difícil, quase no final de um ano difícil. Sentia-me submersa num mar de sargaços, sem conseguir manter-me à tona por muito tempo. Faltava-me o ar e a vida pesava-me como a pedra gigante de mármore entre as mãos de Sísifo. Um eternizar de dias iguais, sem planalto no cimo da montanha, no qual repousar das atribulações. Apetecia-me gritar «Por favor, parem o Universo. Quero apear-me.» Mas como o Universo sofre de deficiência auditiva, em vez de me apear, meti as pernas ao caminho e dirigi-me para o choupal.
Era um ritual que cumpria religiosamente desde há alguns anos. Começara por necessidade física e tornara-se um vício, não só do corpo, mas da mente e da alma. Aproveitara aquelas caminhadas para higienizar os pensamentos e depurar a linfa.
Entrei no percurso do costume e estuguei o passo, olhando para o relógio para cumprir o tempo que a mim própria me impunha. Comecei por programar a agenda da semana, revi os compromissos assumidos e até preparei as refeições da semana. Em seguida, a mente vagueou para os planos sempre adiados, as dificuldades económicas, os desgostos afectivos de uma vida já madura.
- Posso acompanhá-la, companheira?
A voz fez-me estremecer, tal era o alheamento em que me encontrava. Não vira os grupos que corriam à minha frente, os amigos da bicicleta em sentido contrário, os colegas de caminhada, de rosto já registados, os dois cavalos imponente, dos quais me desviei instintivamente. Caminhava apressada, marcando o ritmo de forma mecânica, alheia a tudo em meu redor. Um voz assim, vinda do nada, causara um sobressalto que se traduzira num tremor involuntário.
- Assustei-a, menina?
- Desculpe, estava absorta nos meus pensamentos e não o tinha visto….
- Pois eu já a vi muitas vezes aqui a esta hora. Tem uma passada semelhante à minha.
- Peço desculpa, uma vez mais, mas quando começo a caminhar, não vejo nada, nem ninguém…
- Espero que não se ofenda com a minha proposta.
Olhei-o de soslaio. Aparentava aí uns sessenta e muitos anos, num corpo admiravelmente saudável. Estava equipado a rigor, desde as sapatilhas ao boné de pala, em voga. Os óculos escuros conferiram-lhe outro toque de modernidade.
- De todo. Faça favor.
- Sabe, menina, na minha idade a companhia é um luxo e uma alegria.
- Caminha sozinho?
- Fisicamente sim, mas sou um homem de sorte. Nunca me sinto só.
- Isso é bom…
- Há por aí tanto jovem velho e eu que já sou velho, sinto-me cada vez mais jovem.
- O senhor também não é tão velho assim!
- Que idade me dá? – inquiriu com ar matreiro.
- Não sei…Talvez sessenta e tal.
- Oitenta e dois já cá cantam – rematou cheio de orgulho
Parei de repente, abri os olhos e a boca de espanto e ia para dizer uma banalidade qualquer, mas nenhum som me saiu da garganta.
- Já estou habituado a essa reacção. Ao princípio, ninguém quer acreditar, mas olhe que é verdade.
O passo certo e firme com que me acompanhava, a vitalidade das suas palavras e aquele sorriso maroto escondiam um verdadeiro tesouro de longevidade.
Nem dei pelo passar do tempo no restante percurso. Estava embevecida com a história de vida de um estranho que, generosamente, decidira partilhá-la comigo. As pessoas mais velhas são de palavra fácil e quando sentem que são ouvidas, são de trato afável. Aquele homem tinha uma história de vida incrível.
Tivera um filho na Guerra do Ultramar, na Guiné, que regressara amargo e revoltado com a vida. Nunca mais se integrara na vida civil do pós 25 de Abril e um dia o pai fora encontrá-lo fardado a rigor, com um tiro na cabeça. Abraçou-o fortemente contra o peito, fez-lhe um funeral a preceito e nunca se insurgiu contra aquela partida tão contra natura. Ninguém deve julgar os outros, pois ninguém conhece os seus demónios. Cada um de nós tem de travar as suas batalhas e o desfecho é pessoal e intransmissível.
Anos mais tarde perdera a casa numa derrocada na baixa de Coimbra. Fora um daqueles Invernos impiedosos, que arrasam edifícios de tijolos e de carne e osso. Mudara-se para um pequeno apartamento, parcialmente comprado com o dinheiro do seguro.
- Foi pelo melhor – explicou. No sítio onde morava, já todos os rapazes da minha idade tinham morrido e eu não tinha com quem conversar. Agora tenho sete andares de vizinhos com quem dar à língua.
Há dezassete anos morrera a mulher com uma complicação respiratória, após uma pneumonia. Reformara-se um ano depois e a partir de então passou a ir todos os dias ao cemitério. Não para chorar as partidas, mas para pôr a conversa em dia. Leva sempre uma flor que deposita junto à fotografia, senta-se na berma da campa e conversa longamente com ela. A cumplicidade de uma vida mantivera-se intacta. Passa depois, na campa do filho e dá-lhe notícias dos netos.
Aos setenta anos diagnosticaram-lhe cancro da próstata. De iniciou sentiu-se abalado, mas desde cedo teve a certeza que ia vencer a doença. Fez muitos amigos no hospital e entre os sobreviventes formou um grupo de convívio que, todos os domingos, vai almoçar junto.
- Depois disto decidi começar a praticar deporto e eis-me agora aqui a falar com a menina. Sou um grande tagarela, não sou?
Durante todo o relato pensava em todos aqueles que passam a vida inteira a queixar-se dos pequenos obstáculos diários com os quais se deparam. Pensava naquelas pessoas lamurientas e envinagradas que não conseguem retirar lições de vida da adversidade e chegam ao fim do seu percurso sem nada ter aprendido.
Quanto a mim, havia chegado ao fim do meu percurso de hoje. Transpirava abundantemente, mas nem dera conta do meu esforço físico. Bebia as palavras simples e sábias de um companheiro de caminhada, que tinha muito para me ensinar.
- Foi um prazer ouvi-lo, Sr?
- Sr. Feliz. É assim que toda a gente me chama.
Sorri por fora e por dentro. Não havia decerto nome mais apropriado!
O Sr. Feliz despediu-se gentilmente e seguiu o seu caminho. O meu seguia em sentido contrário. Lembro-me de olhar o céu encastelado e de formular um pedido: «Por favor, parem o Universo. Quero entrar outra vez!» Tive consciência, naquele exacto momento, de que havia muito terreno ainda a percorrer. O Universo certamente tinha um plano secreto para mim e ainda não tinha cumprido o meu papel naquela longa viagem.
Sem comentários:
Enviar um comentário