VITÓRIA
Finalmente chegou o dia. Abriu a porta, pegou nos sacos e voltou-se lentamente. Sentia as unhas a cravarem-se na madeira da mesa da cozinha à qual me havia encostado para não desfalecer. Olhei-o nos olhos e todo o meu mundo pareceu desmoronar-se. Havia tantas coisas que ficaram por dizer!...
Apetecia-me gritar que ainda o amava, que ele tinha sido e seria sempre o homem da minha vida. Nunca tinha querido outro, apesar de tudo. Apetecia-me implorar que não fosse, que ficasse, mesmo que já não me amasse, mesmo que já não me quisesse. Apetecia-me correr para ele, fechar a porta, ajoelhar-me se preciso fosse. A humilhação perante a dor da perda que sentia parecia-me coisa pouca...
Sabia que era agora ou nunca. Sabia que transposta aquela porta, não havia retorno possível. Fechava-se para sempre a possibilidade de um regresso. Sentia-me em carne viva, dilacerada entre a perda de um amor de toda a vida e o orgulho de alguém que teve finalmente coragem de exigir tudo aquilo a que tinha direito. Naquela cozinha estava uma mulher estudada, lúcida e coerente, mas também uma outra esmagada, meia louca e carente.
De repente abateu-se uma tempestade. Uma bátega de água pareceu inundar a Terra. Nuvens negras acasteladas arremessaram um relâmpago e um trovão medonho ouviu-se ribombar ao longe. Estremeci. De surpresa, de medo, de nervos. Lembrava-me agora que desde que tudo começara não havia parado de chover. Tinha sido o Inverno mais rigoroso de que havia memória e o céu parecia não esgotar nunca o seu manancial de água. Chovia, chovia, chovia. Sem parar. Sem lugar a raios de sol que aquecessem o coração. Parecia que a Natureza me acompanhava no meu pranto, solidária com a minha dor. Como hoje não conseguia derramar uma lágrima que fosse, os céus choravam por mim. Como eles não têm orgulho, apelaram em meu nome e o seu rumor fez-se ouvir alto e bom som.
Eu continuava amparada à mesa da cozinha, incapaz de me mexer, de proferir um som que fosse. Tinha gelado por dentro e por fora. Muda e queda, a olhar a pessoa que eu mais queria, ali tão perto e seguramente tão inatingível.
Então sonhei acordada que um relâmpago atravessara a cozinha directa ao seu coração e reacendera uma réstia de cinzas, bem lá no fundo do coração, transformando-as numa labareda de sentimentos perdidos. Sonhei acordada que ele voltara a lembrar-se como é bom estar apaixonado por quem nos ama de verdade, como é bom sentir o coração a bater muito depressa e os corpos a colarem-se sofregamente. Sonhei acordada que a labareda secara a chuva e que finalmente a Primavera podia voltar a florir, não flores de aço como até aqui, mas delicados amores-perfeitos.
Ele pousou os sacos e avançou alguns passos na minha direcção. Senti que não havia mesa que chegasse para me apoiar. As pernas começaram a ceder e as mãos escondidas atrás das costas perderam as forças. Tive que fazer um esforço gigantesco para me manter de pé. Agora sabia que se havia alguém a voltar atrás, não seria eu. Agora sabia que jamais seria capaz de implorar sentimentos, migalhas ou restos. Tudo ou nada, tinha sido a minha aposta. Preferia ficar sem nada do que com meia dúzia de trunfos inúteis ao fim de umas jogadas. Pagava para ver. A parada era muito alta; talvez alta demais para as minhas capacidades. Agora sabia que tinha que jogar o jogo até ao fim. Nele não havia lugar a desistências. Os fracos nunca ganham. Os fortes perdem muitas vezes. Mas depois recuperam.. mais tarde. No mesmo jogo ou noutro completamente diferente. Neste dia ou noutro muito longínquo, quem sabe.
Nem uma palavra havia sido proferida até então. De novo um trovão e um relâmpago. Falavam por mim ou por ele? Parecia que ia abrir a boca e dizer qualquer coisa, mas à última hora arrependeu-se. Olhou para mim com um olhar que não fui capaz de decifrar. Primeiro fixamente à espera quem sabe de quê. Retribui-lhe o olhar, fixamente, à espera do impossível. Foi ele quem primeiro baixou os olhos. Neles havia um misto de desapontamento e de derrota. Baixou-se e pegou primeiro no guarda-chuva e depois nos sacos. Tinha ganho o jogo. Saiu em silêncio e bateu a porta com firmeza.
Fiquei ali muito tempo encostada à mesa, incapaz de mexer um músculo que fosse. Tudo ou nada. E nada tinha sido. Tinha perdido a grande aposta da minha vida, Fui invadida por uma sensação estranha de apatia, de leveza corporal. Não sentia nada: nem os pés, nem a alma. Apenas um grande vazio. Não sei quanto tempo permaneci neste torpor. Parecia não ser capaz de comandar o meu corpo nem a minha vontade. Marioneta sem fios, sem ninguém a manipulá-la.
A chuva foi cessando lentamente e eu fiquei a ouvi-la, como se de mim se tratasse. Algum tempo depois parou. Então consegui finalmente sentar-me. Tinha o corpo dormente. Pensei: e agora? Que faço eu comigo e com todos estes sentimentos?
Foi então que me lembrei. Desci ao jardim e olhei em redor. Havia muito tempo que aquele canteiro estava vazio. Como se tivesse à espera da flor perfeita. Fui ao barracão. Remexi as sementes, calcei as luvas. Ajoelhei-me depois diante do canteiro e comecei a plantar amores perfeitos no meu coração. Nesse momento por entre as nuvens, como que por magia, um raiozinho se sol irrompeu direito a mim e iluminou apenas aquele canteiro. Não restavam dúvidas: era tempo de plantar novamente para mais tarde colher. E desta vez ( quem sabe?) pelo menos um amor-perfeito.
Este é um dos 26 contos publicados, em 2005, na obra Alfabeto no Feminino da Editora Mar da Palavra
Sem comentários:
Enviar um comentário