domingo, 31 de janeiro de 2010

Aos Amores Impossíveis....

DORA

Algures em Portugal, 24 de Agosto de 2000

Meu Amor ,
esta é a última carta que te escrevo sabendo que jamais lerás estas palavras. Como todas as outras acabará amarrotada no cesto dos papéis, junto com o resto da minha vida.
Chamo-te meu amor, aqui à distância, porque sei que não me podes ouvir. A tua ausência dá-me coragem para dizer as palavras que tantas vezes ansiaste que proferisse e o pudor (ou a falta de jeito) me impediu que o fizesse. É verdade: foste e serás sempre o meu amor. Mesmo que a expressão já não se use, que seja ridícula. Contudo, como diz o poeta, não há cartas de amor que não sejam ridículas.
Sem ter consciência disso amei-te, quando a minha intenção não era mais do que esquecer a solidão por algumas horas. Naquele quarto de estudantes de Paris, da Paris profunda (e não da Paris do "glamour"), fizeste-me feliz. É pena que só hoje me dê conta disso. Tão tarde! Tarde demais. ..
Amei-te. Amei cada ano a mais que tinhas em relação a mim. Amei a tua falta de cabelo e a tua barriga proeminente. Amei os olhos de míope por detrás das lentes fora de moda. Amei o teu ar desengonçado a andar. Amei a tua fobia às multidões.
Vivi aqueles momentos na ilusão de que eram apenas vertigem, águias velozes na imensidão desta minha vida tão pequena. Acreditei no plano que a mim própria tinha imposto: "laissez faire, laissez passé". A minha teoria economicista saiu toda furada.
Contigo vivi para lá do tempo, para lá dos olhos do mundo que não compreendia " o que é que eu podia ver num velho cinzentão de jornal debaixo do braço? Para mim sempre foste um jovem irreverente, cheio de vida pela vida. Um cavalo que não se abate. Através dos teus olhos eu via outro mundo mais vasto, para lá dos horizontes daquela janelinha minúscula que deixava ver uma nesga de céu azul. Através das tuas histórias vivi revoluções, assisti a banquetes, vivi a História por dentro da História. E como tu mudaste a minha história!...
Hoje, tanto tempo depois, recebi a notícia da tua morte. Não vou ao teu funeral. Não quero olhar um rosto que não é aquele que eu amei. Não quero restos, sombras do sol que iluminou meus dias numa altura em que me preparava para deixar de viver. Recuso-me a acreditar que partiste de vez. Não, não vou a Paris. Vou ficar aqui à beira-mar a ler poesia, a voar liberta, qual Fernão, fora do meu corpo, daquele corpo que deu e recebeu tanto prazer outrora. Vou ficar aqui a relembrar o teu sorriso gaiato, os teus cabelos em desalinho, o ar tímido com que depois puxavas os lençóis.
E eu sempre a dizer que não te amava, que sim senhora, gostava de estar contigo, mas amor ?! Essa ideia para mim era algo "démodé". Eu não queria mais ninguém por quem me apaixonar, por quem sofrer mais desilusões. Tinha medo, muito medo de que ao beijar-te um dia te transformasses em sapo e eu ficasse uma vez mais enterrada na torre de marfim do meu castelo desencantado. Por isso quando começaste a fazer juras de amor eterno, senti calafrios. Eu não queria pensar na ideia de ter alguém para sempre. Para sempre era muito tempo!...Eu, que sempre fui tão perecível... Assustei-me, fugi dali, fugi de ti a sete pés como o Diabo foge da cruz. O teu amor assustou-me, as tuas certezas apavoraram-me, a prisão de um futuro todo determinado aterrorizou-me. Tinha de sair dali enquanto era tempo. Não queria amarras, eu que sempre gostei de voar. Perdoa-me mas não consigo viver em gaiolas, mesmo que sejam douradas, mesmo que sejam em Paris.
Para mim não passavas de uma aventura inconsequente que de repente vi transformar-se em algo sério demais. Isso não estava nos planos, professor. Gostava de saber que no final do dia voltavas para a tua mulher, filhos e casa, e eu voltava a ter aquele espaço todo só para mim. Voltava a ser apenas eu: a andar descalça e sem maquilhagem. A roer uma maça numa janela do Sorbonne. Desconhecida, incógnita, anónima. EU .
Na minha vida não havia lugares para nós. Já me tinha habituado de conjugar os verbos somente no singular. Por isso vim: sem me despedir, sem me justificar, sem te agradecer a tua sabedoria e bondade, sem olhar para trás. Mas na mala também vieram as recordações. Clandestinas, não declaradas na alfândega.
Nunca te esqueci e ao fim destes anos todos percebi estranhamente, e tarde demais, que afinal te amei. Sem saber, amei-te como soube. Desinteressadamente, inconscientemente ...
Não acredito em amores felizes. Acredito apenas em almas que sempre se conheceram, que atravessam os portais do tempo e voam através da imensidão de uma noite estrelada.
Vou ficar aqui à beira-mar a olhar o firmamento à procura daquela gaivota que eu vou saber seres tu. Depois voarei até ti, só para te sussurrar antes de te ver desaparecer no horizonte: «Vai em paz, meu amor. Voa bem. »

Da sempre tua Dora
24-08-2000
Este é mais um conto do meu livro Alfabeto no Feminino, da Editora Mar da Palavra, publicado a 8 de Março de 2005, no Dia Internacional da Mulher

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Faltei à promessa

Não consegui publicar nada no dia 27, conforme prometido. Semana muito dura: falta de tempo e de imaginação para publicar.Vou recorrer aos textos do meu livro Alfabeto no Feminino que ainda não publiquei neste blogue. Boa leitura!

NOÉMIA BOAVENTURA


Olá minhas amigas! Hoje vou-lhes ensinar como é fácil livrar-se de um marido. Esta é uma receita com algum grau de dificuldade e que requer tempo e paciência. Primeiro os ingredientes:
§ 1 kg de carne de novilho para assar, de preferência louco
§ 100 gr de manteiga rançosa
§ 1/5 kg de sal grosso
§ 5 malaguetas
§ 3 grãos de pimenta preta
§ 1 cebola já com bolor
§ 3 dentes de alho chocho
§ 1 pitada de colorau
§ 1 ramo de cheiros
§ 1,5 dl de azeite retrasado
§ 2 dl de vinho branco avinagrado
§ 2 dl de água da torneira com bastante calcário .
§ 1 kg de maçãs rainetas
§ 1 gole de vinagre
§ 2 laranjas azedas e com pouco sumo
Faça uma pasta com a manteiga, o sal, as malaguetas, a pimenta, o colorau e os alhos. Barre a carne com esta mistura e deixe repousar de um dia para o outro.
No próprio dia leve a cebola a alourar em azeite numa caçarola. Quando a cebola estiver translúcida, introduza a carne, deixando-a alourar. Regue a pouco e pouco com o vinho branco e junte a água. Adicione o ramo de cheiros. Tape e deixe estufar durante 20 minutos em lume brando. Antes de desligar, avive o lume e deixe-a esturricar um pouco para adquirir o sabor a carne queimada.
À parte prepare o puré de maçãs rainetas. Descasque as maçãs, corte em quartos e retire-lhes as sementes. Lave-as e leve a cozer em água. Depois de cozidas, reduza-as a puré. Regue com vinagre e bata novamente com a batedeira. Para a sobremesa apresente as laranjas azedas e com pouco sumo ao natural.
Uma hora antes de ter o jantar pronto, telefone ao seu marido e diga-lhe que esta noite tem um jantar especial para ele. Deixe-o queixar-se de como o convite vem em cima da hora, logo hoje que ele está cheio de trabalho. Assim terá uma boa desculpa para a carne esturricada- A culpa será do atraso dele.
Ponha uma boa toalha de mesa, a tal da última festa cuja nódoa de gordura nunca mais conseguiu tirar. Verifique se a nódoa se encontra num lugar visível, de forma que ele não deixe de reparar nela. Ponha o serviço de jantar de porcelana, o faqueiro debruado a ouro de 15 quilates e os copos de cristal. O garfo dele deverá estar manchado e o copo deve ser aquele esbeiçado, com o qual ele já implicou tantas vezes. Um pequeno arranjo de flores às quais ele é alérgico fica sempre bem. Nos castiçais, as velas que lhe ofereceu o seu antigo namorado, aquele com quem a esta hora poderia estar casada. O tal que ganha rios de dinheiro e continua solteiro.
Vista um vestido ousado, com um grande decote que ele considera indecente. Calce os sapatos mais altos que tiver, de forma a que ele fique uns centímetros mais baixo do que você. Os homens odeiam ter de olhar para uma mulher de baixo para cima. Pinte-se muito: use sombras de cores fortes e baton vermelho escarlate. Borrife-se com água de colónia cujo aroma se detecta a quilómetros de distância.
Receba-o com um sorriso rasgado como se este jantar fosse inesquecível. Sem dúvida o será. Beije-o com vigor deixando-lhe marcas de baton por todo o lado. Até na camisa Vítor Emanuel que ele adora e não quer de modo algum que fique manchada.
Convide-o para um brinde à vossa vida conjugal e finja-se muito consternada quando ele disser que o vinho está quente. Ah, pois, com tanta coisa, esqueceu-se de o pôr no frigorífico. Sempre há o gelo...
Sorria sempre quando ele fizer reparos ao vestido, à toalha, ao garfo e ao copo. Quanto ao vestido era para lhe agradar, quanto ao resto, ele tem toda a razão, vai já imediatamente trocar tudo.
Sirva o jantar com todos os SSs e RRs e comece a mostrar-se magoada com os comentários dele à qualidade da comida: queimada, salgada, azeda,... lamente-se tristemente por todo o seu trabalho, por todas as horas que passou na cozinha, pelo tempo que gastou a copiar a receita do livro de culinária internacional. Faça-o sentir-se mal agradecido e culpado pela ignorância demonstrada. O puré de maçã é bem mais chique do que o de batata, toda a gente sabe isso! ! ! Por amor de Deus! Diga-lhe que para a próxima não vai matar-se a trabalhar por ele. Ele que coma sanduíches!...
Quando ele começar a espirrar vezes sem conta e a acusá-la de ter posto as flores às quais ele é alérgico, contra-ataque e responda-lhe que se ele lhe oferecesse flores de vez em quando, talvez você se lembrasse desse facto. Como tal não acontece, é muito fácil você esquecer-se da alergia dele. Nesta altura o nariz estará vermelho, os olhos lacrimejantes, a garganta a arder. Ele rogar-lhe-á para você apagar as malditas velas, cujo aroma e odor só estão a piorar as coisas. Você responde-lhe em voz áspera que o que ele tem é ciúmes e que não suporta que lhe lembrem que o seu ex-namorado é mais rico do que ele e mais bonito também. E era bem mais atencioso!...
Em seguida levante-se irritada, vá buscar a sobremesa e atire-a com força para cima da mesa. Diga-lhe para ele comer se quiser que você entretanto perdeu o apetite.
A esta altura ele levantar-se-á e ambos iniciarão uma discussão feia e acesa. Atire- lhe à cara todas as acusações que guardou durante a sua vida de casada. Assegure-se que lhe toca naqueles pontos sensíveis: ele jamais a perdoará. Por último peça o divórcio.
Se ele aceitar de bom grado e sair porta fora irado, batendo com a porta, abra aquela garrafa de champanhe que tinha escondida no congelador e celebre a sua vitória. Parabéns! Você ganhou!
Se ele amuar apenas ou regressar horas mais tarde disposto a fazer as pazes, diga-lhe que está com dores de cabeça ou com o período. Vai ver como ele sai novamente disparado.
Se nada disto resultar, olhe arranje um amante. Essa receita nunca falha. E... Bom Apetite.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Encerrada para balanço


À semelhança das empresas em início de ano fiscal, vou estar ausente nos próximos tempos devido ao muito trabalho que tenho em mãos nas próximas semanas. Aproveito para fazer também um balanço destes meses e descansar um pouco de mim...


Excepção para dia 27 deste mês, data do meu aniversário: vamos lá ver se arranjo algo mais optimista do que os últimos textos.


Até lá: «Carpem diem».


Ana Paula Mabrouk

domingo, 24 de janeiro de 2010

A Hora da Partida

Ainda não tinha colocado nenhum poema dessa poeta maior que foi Sophia de Mello Breyner Andresen.



A HORA DA PARTIDA




A hora da partida soa quando

Escurece o jardim e o vento passa,

Estala o chão e as portas batem, quando

A noite cada nó em si deslaça.



A hora da partida soa quando

As árvores parecem inspiradas

Como se tudo nelas germinasse.



Soa quando no fundo dos espelhos

Me é estranha e longínqua a minha face

E de mim se desprende a minha vida.



Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 23 de janeiro de 2010

Vitória

VITÓRIA


Finalmente chegou o dia. Abriu a porta, pegou nos sacos e voltou-se lentamente. Sentia as unhas a cravarem-se na madeira da mesa da cozinha à qual me havia encostado para não desfalecer. Olhei-o nos olhos e todo o meu mundo pareceu desmoronar-se. Havia tantas coisas que ficaram por dizer!...
Apetecia-me gritar que ainda o amava, que ele tinha sido e seria sempre o homem da minha vida. Nunca tinha querido outro, apesar de tudo. Apetecia-me implorar que não fosse, que ficasse, mesmo que já não me amasse, mesmo que já não me quisesse. Apetecia-me correr para ele, fechar a porta, ajoelhar-me se preciso fosse. A humilhação perante a dor da perda que sentia parecia-me coisa pouca...

Sabia que era agora ou nunca. Sabia que transposta aquela porta, não havia retorno possível. Fechava-se para sempre a possibilidade de um regresso. Sentia-me em carne viva, dilacerada entre a perda de um amor de toda a vida e o orgulho de alguém que teve finalmente coragem de exigir tudo aquilo a que tinha direito. Naquela cozinha estava uma mulher estudada, lúcida e coerente, mas também uma outra esmagada, meia louca e carente.

De repente abateu-se uma tempestade. Uma bátega de água pareceu inundar a Terra. Nuvens negras acasteladas arremessaram um relâmpago e um trovão medonho ouviu-se ribombar ao longe. Estremeci. De surpresa, de medo, de nervos. Lembrava-me agora que desde que tudo começara não havia parado de chover. Tinha sido o Inverno mais rigoroso de que havia memória e o céu parecia não esgotar nunca o seu manancial de água. Chovia, chovia, chovia. Sem parar. Sem lugar a raios de sol que aquecessem o coração. Parecia que a Natureza me acompanhava no meu pranto, solidária com a minha dor. Como hoje não conseguia derramar uma lágrima que fosse, os céus choravam por mim. Como eles não têm orgulho, apelaram em meu nome e o seu rumor fez-se ouvir alto e bom som.

Eu continuava amparada à mesa da cozinha, incapaz de me mexer, de proferir um som que fosse. Tinha gelado por dentro e por fora. Muda e queda, a olhar a pessoa que eu mais queria, ali tão perto e seguramente tão inatingível.

Então sonhei acordada que um relâmpago atravessara a cozinha directa ao seu coração e reacendera uma réstia de cinzas, bem lá no fundo do coração, transformando-as numa labareda de sentimentos perdidos. Sonhei acordada que ele voltara a lembrar-se como é bom estar apaixonado por quem nos ama de verdade, como é bom sentir o coração a bater muito depressa e os corpos a colarem-se sofregamente. Sonhei acordada que a labareda secara a chuva e que finalmente a Primavera podia voltar a florir, não flores de aço como até aqui, mas delicados amores-perfeitos.

Ele pousou os sacos e avançou alguns passos na minha direcção. Senti que não havia mesa que chegasse para me apoiar. As pernas começaram a ceder e as mãos escondidas atrás das costas perderam as forças. Tive que fazer um esforço gigantesco para me manter de pé. Agora sabia que se havia alguém a voltar atrás, não seria eu. Agora sabia que jamais seria capaz de implorar sentimentos, migalhas ou restos. Tudo ou nada, tinha sido a minha aposta. Preferia ficar sem nada do que com meia dúzia de trunfos inúteis ao fim de umas jogadas. Pagava para ver. A parada era muito alta; talvez alta demais para as minhas capacidades. Agora sabia que tinha que jogar o jogo até ao fim. Nele não havia lugar a desistências. Os fracos nunca ganham. Os fortes perdem muitas vezes. Mas depois recuperam.. mais tarde. No mesmo jogo ou noutro completamente diferente. Neste dia ou noutro muito longínquo, quem sabe.

Nem uma palavra havia sido proferida até então. De novo um trovão e um relâmpago. Falavam por mim ou por ele? Parecia que ia abrir a boca e dizer qualquer coisa, mas à última hora arrependeu-se. Olhou para mim com um olhar que não fui capaz de decifrar. Primeiro fixamente à espera quem sabe de quê. Retribui-lhe o olhar, fixamente, à espera do impossível. Foi ele quem primeiro baixou os olhos. Neles havia um misto de desapontamento e de derrota. Baixou-se e pegou primeiro no guarda-chuva e depois nos sacos. Tinha ganho o jogo. Saiu em silêncio e bateu a porta com firmeza.

Fiquei ali muito tempo encostada à mesa, incapaz de mexer um músculo que fosse. Tudo ou nada. E nada tinha sido. Tinha perdido a grande aposta da minha vida, Fui invadida por uma sensação estranha de apatia, de leveza corporal. Não sentia nada: nem os pés, nem a alma. Apenas um grande vazio. Não sei quanto tempo permaneci neste torpor. Parecia não ser capaz de comandar o meu corpo nem a minha vontade. Marioneta sem fios, sem ninguém a manipulá-la.

A chuva foi cessando lentamente e eu fiquei a ouvi-la, como se de mim se tratasse. Algum tempo depois parou. Então consegui finalmente sentar-me. Tinha o corpo dormente. Pensei: e agora? Que faço eu comigo e com todos estes sentimentos?
Foi então que me lembrei. Desci ao jardim e olhei em redor. Havia muito tempo que aquele canteiro estava vazio. Como se tivesse à espera da flor perfeita. Fui ao barracão. Remexi as sementes, calcei as luvas. Ajoelhei-me depois diante do canteiro e comecei a plantar amores perfeitos no meu coração. Nesse momento por entre as nuvens, como que por magia, um raiozinho se sol irrompeu direito a mim e iluminou apenas aquele canteiro. Não restavam dúvidas: era tempo de plantar novamente para mais tarde colher. E desta vez ( quem sabe?) pelo menos um amor-perfeito.


Este é um dos 26 contos publicados, em 2005, na obra Alfabeto no Feminino da Editora Mar da Palavra

Falamos depois de Paulo Gonzo

Há letras de músicas que são verdadeiros poemas e licções de vida. Vejam:



quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Não quero ir para casa


Não quero ir para casa.
Quero ficar aqui,
Onde ninguém me conhece,
E contemplar o mar da minha calma.
Lavar meus pensamentos turvos
Tranquila e anónima entre os demais.
Não quero ser reflexo de ninguém
Nem vida, por outros planeada
Estou cansada deste filme
E o guião não me faz jus
Não quero ser actriz marioneta.
Quero ser realizador e ganhar
O Óscar da minha vida-prima.


02-08-2009
Galiza

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Helena

Helena é um dos 26 contos do livro Alfabeto no Feminino, publicado pela Editora Mar da Palavra a 8 de Março de 2005


HELENA


Deixai que lhe diga, linda dama
Quanto minh' alma anseia por vós, meu bem
Quanta sede busca bálsamo que não tem.
Deixai que diga quanto vos ama.

Sois bem galante, meu senhor
Dono de verbos tantos e prosas tais
Que ao ouvir-vos, ouço os meus ais.
Em vós s' esconde o meu amor .

Senhora de todo o meu ser
Perdoai-me a ousadia
Mereço pois a meu ver

Um beijo, senhor, bem fazia
Pudera meu pejo e pudor
Não vos rogar um tal favor.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pensamento sobre a felicidade





A felicidade não pressupõe um ponto final
Mas um número infinito de reticências.

23/09/1988

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Para que me serve a poesia?

«Se a poesia não serve para acelerar-me o sangue, para abrir-me de repente janelas sobre o misterioso, para ajudar-me a descobrir o mundo, para acompanhar este desolado coração na solidão e no amor, na festa e no desamor, para que me serve a poesia?»

Eduardo Carranza citado no livro Viver para contá-la de Gabriel García Marquez

domingo, 17 de janeiro de 2010

O piolho zarolho de Lurdes Breda





Através da editora Temas Originais, a escritora Lurdes Breda vai apresentar, no próximo mês de Fevereiro, em Coimbra, o seu novo livro. Trata-se de um projecto especial no âmbito da educação especial e da inclusão, uma ferramenta importante no dia-a-dia de muitas crianças e terapeutas. Chama-se "O Piolho Zarolho e o Arco-Íris da Amizade" e tem a participação, nas ilustrações, de Carla Figueiredo e a colaboração da APPACDM - Unidade Funcional de Montemor-o-Velho.
A revista LIVROS & LEITURAS antecipa-se à apresentação deste projecto, e anuncia aos seus leitores o que nos traz esta obra. Este projecto é composto por uma curta história, constituída por vinte quadras de carácter lúdico-pedagógico. Cada quadra será acompanhada pela respectiva ilustração, condizente com o conteúdo da informação a veicular. Serão, pois, concebidas vinte ilustrações, tão importantes quanto a parte escrita, desejando-se, por isso mesmo, sensíveis e apelativas, em complementaridade às palavras.


Deste modo, poder-se-á aliar a parte visual à literatura e vice-versa, sendo que o objectivo final será sempre o estímulo para o conhecimento e aprendizagem do texto. Em alternativa ao texto convencional apresentam-se, igualmente, as quadras em Escrita Aumentativa (Escrita com Símbolos), o que vai permitir outras formas de comunicar, sobretudo, para quem tem dificuldades de comunicação verbal ou escrita.
Associando-se as imagens, o texto e os sons, este método pode ser utilizado para processos de reabilitação ou em contextos educativos, nomeadamente para crianças com necessidades especiais ou dificuldades de aprendizagem. A conversão do texto, pelo processo de Escrita com símbolos, através do devido programa informático (software), será feita por jovens deficientes mentais, utentes da APPACDM de Coimbra – Unidade Funcional de Montemor-o-Velho, sob a supervisão pedagógica da Professora Lina Carregã. Em complementaridade, serão adicionados, no final do livro, alguns exercícios simples, em Escrita Aumentativa, de forma a estimular a utilização e compreensão, não só deste sistema, mas também da mensagem contida na história.
“O Piolho Zarolho e o Arco-Íris da Amizade” tem como alvo preferencial o Ensino Pré-Escolar — uma vez que os conteúdos científicos explorados e a linguagem utilizada se relacionam com as devidas orientações programáticas —, embora possa ser alargado aos primeiros anos do Ensino Básico do 1º Ciclo e a pessoas com necessidades educativas especiais.

E agora algo completamente diferente

BRUNO


Sentia-se no topo da montanha, qual Sinatra no auge da sua carreira. Finalmente tinha na mão o seu tão ansiado Blackberry.
Meses de literatura, contas e flirt prolongado. Toque suave, olhar guloso, instinto de matador. As mulheres costumavam afirmar que “who rocks the cradle, rules the world”, mas no mundo dos homens “who has the right gadgets, rules the world indeed”.
Aquele escritório de bolso, aquele slogan de O Mundo em qualquer lugar, enchia-lhe as medidas. Sentia-se um veleiro de velas enfunadas, deslizando altivo no mar da alta finança. Na crista da onda da tecnologia de ponta. Não mais se incluía no rol dos info-tecno-black excluídos.
Primeiro amou-o com o toque – o sentido mais imediato. Acariciou-o como quem desliza as mãos ansiosas por uma nova conquista. Aquele formato de morena platinada provocava-lhe um deslumbramento inenarrável. Firmou as mãos como quem agarra determinado as curvas de uma mulher no momento certo. Seguro de si, consciente do seu sucesso. Garanhão premiado num mundo onde a competição impera e determina a sobrevivência dos mais forte.
Em seguida, demorou o olhar pelo ecrã de alta definição, mirou sofregamente os menus simples e intuitivos, o teclado Qwerty, acedeu à televisão online, surfou pela Internet a 3,6 Mbps e tirou fotos a si próprio, com a câmara de 2 megapixels. Um deslumbramento de criança que experimenta um brinquedo novo. “Boys with toys”. Os olhos pestanejavam de comoção.
Cheirou-o, depois, como um animal durante o cio, desejoso de satisfazer a sua pulsão sexual. Acabamentos em pele. Sentiu um arrepio de comoção. Feromonas activadas e narinas dilatadas. Inalava odores inconfessados de perfumes caros ao sexo masculino. Arfou como um alazão, pronto a acasalar.
Inseriu o auricular estéreo e sincronizou os itunes. Verdadeira música para os seus ouvidos. Sinfonias do século XXI, a retumbar nos seus pavilhões. Martelos e bigornas ao rubro. O prazer da audição, estimulado em contínuo. Movimentou-se num ascendente de sensações. Queria verificar o funcionamento do GPS. Navegou em tempo real numa prova automobilística de curta distância. Checked! Ah, a compatibilidade com o MP4! Não esquecer…. Procurou no porta-luvas, por entre os seus inúmeros gadgets e estabeleceu a ligação. As suas músicas preferidas num smartphone de última geração. O sonho de qualquer executivo, a desenrolar-se ali mesmo no conforto dos bancos de pele, diante de um volante desportivo.
Quanto ao paladar, sentia as papilas gustativas a salivar, na ante-véspera do prazer. Imaginava-se já a mandar e-mails em tempo real às futuras conquistas XX e fotos comprovativas dos encontros escaldantes aos invejosos XY. Sentia-se no clímax do poder e da sedução. Tinha entrada na geração multimédia, com um topo de gama de design sofisticado. Era um dos eleitos entre a urbe dos anónimos.
E foi nesse instante que uma vaga de rubor lhe invadiu a face cuidada de metrossexual, ao sentir um orgasmo irreprimível desaguar das suas entranhas, em pequenos e vigorosos vagas de satisfação. Também ele em tempo real; também ele instantaneamente, de forma rápida e intuitiva. Um mundo de conteúdos na palma da mão.
Blackberry – Um computador que permite trabalhar e divertir-se em qualquer lugar!
Este é um dos contos que irá pertencer ao meu futuro livro de contos intitulado Homens de A a Z

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ainda na onda das constipações

Aqui vai a minha solidariedade para com os constipados. Claro que nos homens o assunto é grave...

Poema aos homens constipados


Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.



António Lobo Antunes
Sátira ao "sexo forte"

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Em casa,com uma grande constipação

Estou em casa, doente, com uma grande constipação a somar a uma semana «horribilis» (ecoando as palavras da Raínha Isabel II, em tempos idos) e não me ocorre nada de interessante para escrever. Vou usar, por isso, as palavras sábias do meu escritor favorito.
Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos com a vida,
E fazem-nos espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez du peu... Que grande constipação física!
Preciso da verdade e de aspirina.
14/03/1931
In Álvaro de Campos, Poesia, Assírio & Alvim, Março 2002

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Poemas gravados em MP3

Quem estiver interessado em enviar poemas gravados em formato MP3 poderá fazê-lo para o endereço poesia@sympatico.ca.

O receptor tem um programa de radio onde poderá fazer a sua divulgação.

Quem fala de Amor...

Quem fala de Amor não ama verdadeiramente: talvez deseje, talvez possua, talvez esteja realizando uma óptima obra literária, mas realmente não ama; só a conquista do vulgar é pelo vulgar apregoado aos quatro ventos; quando se ama, em silêncio se ama: às vezes o sabe a mulher amada, mas creio até que num amor que fosse pleno, em que nada entrasse das preocupações da terra, nem ela o saberia.[...]
Admirar a Natureza e não admirar a mulher que é a sua obra mais bela e não a admirar, querendo-a, em tudo o que ela é, espírito e corpo, é ser um poeta que faltou, na sua alma, à amplitude do mundo. O primeiro dever diante de uma mulher é ser um fogo que arde e um coração que se vigia.[...]
Apesar de todas as amizades, sempre na vida estamos sozinhos; o que é mais grave, mais doloroso, exactamente como o que é mais belo, passa-se apenas connosco. Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem. Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor: o que temos pelos outros. De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.[...]
Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida.


Agostinho da Silva, in Sete Cartas a um Jovem Filósofo – Seguidas de Outros Documentos para o Estudo de José Kertchy Navarro”, I, II, edição da Ulmeiro, 1990

domingo, 10 de janeiro de 2010

Elogio no Mural de Escritores

Mural dos EscritoresPortal Revista da Rede Sócio-Cultural de Escritores

Uma mensagem a todos os membros de Mural dos Escritores

Seremos pre-históricos num mundo onde a máquina e a tecnologia vão mais rapido que nossos pés e pensamentos? Ainda acho que algumas coisas nunca mudam. Lógico que há a liberdade de quem pensa diferente, pois desiguais que somos, assim são nossos caminhos. Só não podemos ir contra nossa própria índole. Querer acompanhar a onda só porque está na moda, eu não sei se compensa.


“Há muitos anos atrás, olhando para um casal de velhotes, de mãos dadas, pacificamente sentados num banco de jardim e chorei. Chorei de frustração perante um sonho de infância, que já fora o meu, e que eu perdera algures, pelo caminho. Chorei de inveja por não ter conseguido atingir o estádio de sabedoria daqueles seres. Chorei de pena por aquele instantâneo não ser o meu. “


Eu poderia ter escrito isso, já que penso assim, mas quem escreveu foi Ana Paula Ramos, e convido todos vocês para a leitura. Quero-lhes oferecer a oportunidade de encantarem-se: http://muraldosescritores.ning.com/profile/AnaPaulaRamosAmaro Quero crer que os sonhos nunca acabam, pois eles não existem antes de nós. Somos nós os sonhadores e os realizadores. Ana da Cruz.


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sábado, 9 de janeiro de 2010

Passagem


Voo no rio
Nado na árvore
Cresço no céu
Ascendo à terra
E morro no mar.

06/08/2009
Abrantes, Alentejo

Divulgação: Fotopoema Inverno

Para todos os interessados em fotografia e poesia segue o site http://margensdapoesia.blogspot.com, cujo assesor é Manuel Dias da Silva, membro do Grupo Poético de Aveiro. Atrevam-se!

VIII Jogos Florais de Avis


Está aberto o Concurso Literário dos VIII Jogos Florais de Avis, cujo regulamento pode ser consultado no site: http://www.aca.com.sapo.pt/



Fora do tempo


Nasci antes do tempo
Ou depois dele, quem sabe
Só sei que não sou daqui.
Estranho a paisagem dos dias
Entranho o vazio das almas
E sinto que a minha passagem
Perdeu o sentido da viagem.
Pensei aprender com o castigo
Aprender nas entrelinhas
Escrevendo o que falta no caminho
Completando os espaços em branco
Dando sentido à longa estrada
E no entanto, cada vez mais perdida,
Sigo fora do tempo, nos carreiros da vida.

06/08/2009
Abrantes, Alentejo
Poema e foto de Ana Paula Mabrouk

Amor a dois

Amor a dois

«O Amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são pequenas preparações.»

Rainer Maria Rilke in Cartas a um Poeta


Fui educada para crescer, acreditando que ia encontrar um grande amor, casar e permanecer em estado de graça para sempre. Não que tivesse exemplos reais em meu redor que comprovassem esta filosofia de vida. Todos os casamentos que conhecia eram a prova viva do provérbio «Faz o que eu digo, não faças o que eu faço».
Cresci rodeada de desamores e rancores e incredulamente pensei que um dia iria encontrar alguém especial e construir uma relação sólida, diferente da dos outros. Santa ignorância e arrogante presunção!
Põe que razão as escolas e as famílias não preparam as raparigas e os rapazes para viverem uma relação baseada na confiança ena partilha? As mães continuam a oferecer bonecas, carrinhos de bebés e utensílios de cozinha às suas filhas. Lêem-lhes livros de encantar e compram-lhe acessórios de princesas. Todas elas com caras resplandecentes, corpos fenomenais e bens de consumo topo de gama. Os pais escolhem carros de corrida, bicicletas de montanha e levam os filhos às actividades extra-curriculares, estimulando a competição e a ambição de terem um filho campeão de todas as suas frustrações. E os miúdos lá vão crescendo e imitando os modelos que lhes deram até que, inevitavelmente, os dois mundos se encontram.
Primeiro, é o deslumbramento da descoberta: existem seres diferentes do outro lado da vida! Pasmem os céus e a Terra! Em seguida, passa-se para o encantamento: tudo é mágico, tudo é cúmplice, tudo é intenso. Os dias e as noites correm céleres, sem tempo para que o fogo deixe descobrir que as labaredas têm nuances de cor. A voracidade das novas emoções cega a percepção e esconde os trambolhões da realidade. Seguem-se os projectos para o futuro, a luta a dois por planos de vida, traçados em horas de insónia criativa. Com o passar dos anos a lufa-lufa do dia-a-dia encarrega-se de manter os dois seres tão ocupados que eles se esquecem de interrogar as razões que lhe subjazem. Vão vivendo, lado a lado, mas não em sintonia plena, de quem partilha uma vida com alguém que nos compreende e perdoa as imperfeições. Alguém que aceita o facto de não sermos o sonho perfeito que em tempos sonharam.
Um dia, inexoravelmente, acordam e estranham-se. Olham-se e vêem-se pela primeira vez, como realmente são e o choque inicial é tal que deixa marcas para sempre. Normalmente a realidade nua e crua confronta-os com dois mundos paralelos, separados por Himalaias de aspirações e de projectos pessoais. Compreendem, finalmente, que o caminho que os trouxe até aqui, tão bem sinalizado por placas azuis e indicações gigantescas, já não voltará a ser o mesmo. Acabou a auto-estrada, a via está em obras e existe uma série de circuitos alternativos. É preciso pensar, decidir, escolher e chegar a um consenso quanto ao caminho a seguir. Ou não.
Essa experiência difícil e dolorosa de continuar a entrega a outro ser humano tão longe das nossas fantasias é, sem dúvida, o mais alto testemunho de nós próprios. Amar alguém estando lucidamente acordado para a realidade é uma tarefa hérculea. Não conheço obra que exija maior preparação e tenha tamanho índice de fracasso previsível. Quem corajosamente e informadamente escolher percorrer os restantes carreiros da vida, não lado a lado, mas com um só traço de pegadas na areia, recebe da minha parte a mais sentida ovação. Deveria haver um Prémio Nobel para o Amor.
E não afirmo isto de ânimo leve ou subitamente acometida por uma pieguice, tão própria do que alguns apelidam de sexo fraco. Há muitos anos atrás, olhando para um casal de velhotes, de mãos dadas, pacificamente sentados num banco de jardim chorei. Chorei de frustração perante um sonho de infância, que já fora o meu, e que eu perdera algures, pelo caminho. Chorei de inveja por não ter conseguido atingir o estádio de sabedoria daqueles seres. Chorei de pena por aquele instantâneo não ser o meu.
Ontem assisti a outro episódio curioso. Numa fila de um aquaparque, frequentado maioritariamente por casais jovens, deparei-me com um casal francês, seguramente acima dos sessenta anos. Trocavam chalaças, riam-se jovialmente dos gritos dos mais novos e, a certa altura, beijaram-se apaixonadamente. Um beijo na boca, longo, sentido, com os braços enlaçados em redor das respectivas cinturas. Observei o espanto nos olhos dos vários adolescentes e até mesmo uma pontinha de escárnio em alguns. Sorri. Senti uma alegria genuína por encontrar dois seres maduros que, chegados ao fim da auto-estrada, optaram e souberam manter a sua escolha de felicidade partilhada. Imaginei quanto esforço não foi necessário para levar a cabo esta obra-prima. Sorri de contentamento, de inveja boa (que também a há), de júbilo por poder ser testemunha daquele exemplo de vida. Enquanto eu filosofava, anónima entre a multidão, os dois deslizaram por um tubo de água que terminava numa queda abrupta. Deram um valente trambolhão mas levantaram-se logo, em seguida, às gargalhadas. Eu, turista acidental, ovacionei-os de pé.

Hotel Grand Dauphine, Toulon
21/08/2009

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Princípio

Este ano
Vou lançar mão de mim
E semear loiras searas
Onde existia apenas xisto.

Vou soltar amarras
E voar
Quebrar as asas
Cair
E tornar a rumar
Ao azul
Renascida
E altiva
Pássaro e alma

Vou salinar olhos
E ser
Mar e lodo
Cais
Porto de abrigo
Tranquilo
Decadente
Ao vento
Mastro erguido

Vou pedir impossíveis
E receber
Dívidas terrenas
Brindar
À má sorte
Sorrindo
Sonhando
Beijar
Calos de promessa


Vou almejar infinitos
Em terra
Sonhar acordada
Desperta
Mulher-menina
De esperança
Aprisionada
Andando
Horizonte no olhar

Este ano
Eu vou.

04/01/2010

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Finalmente só!

Finalmente só!
Comigo e com o tempo.
Com a noite e a madrugada.
Com as horas nocturnas sem fim.
E os sonhos sem história.
Com o silêncio impossível de mim.
Finalmente só.
Acompanhada pelo eco ensurdecedor
Do silêncio e da solidão.
E tão tristemente só….

A idade da sabedoria

A idade da sabedoria

«Nem tudo se pode aprender ou dizer, como nos querem fazer acreditar.»

Rainer Maria Rilke in Cartas a um Poeta

Existe um mito de que todos podem aprender tudo, sendo a motivação e a determinação os únicos motores necessários à aprendizagem. A estas certezas ingénuas da juventude advêm, com o tempo, as duras penas da frustração. Chegará um dia em que nos havemos de considerar maus estudantes da vida, ou pior ainda, seres desprovidos de capacidade de aprender o que nos querem fazer aprender.
Existem vários motivos para este fracasso. Talvez o principal se prenda com as palavras. Elas são, por um lado, as nossas maiores armas e, por outro lado, os piores instrumentos de aprendizagem. Com elas lançamos mão da capacidade de diálogo, discussão, descodificação do mundo. Através delas entendemos outros idiomas, lemos obras de autores dos antípodas, aprendemos, todos os dias, a História em perpétua mutação das várias nações que compõem o puzzle deste mundo. Moderno e supostamente civilizado.
Elas trazem até nós, bem perto, às vezes por dentro dos ossos e dos nervos, as tragédias, as barbáries, as guerras sempre necessárias a uns e devastadoras para outros. Todos os dias somos invadidos pela esmagadora sensação de que viver pesa, custa e paga-se a sangue e lágrimas.
Há dias, porém, que a água salgada que nos baila nos olhos provém de um acontecimento feliz: o salvamento de uma criança ou de uma baleia. Um ser minúsculo que se agiganta na alegria que nos provoca ou um ser gigantesco que nos comove até ao mais íntimo do nosso ser.
E tudo isto é obra resultante de sons articulados, denominados palavras! Não há dúvida, nem pode haver: elas abrem-nos o mundo e nos abrem ao mundo.
No entanto, com o avançar da idade, vamos aprendendo que, contas feitas, nem sempre todas as palavras se podem dizer. As mais doces agrilhoam-nos, às vezes, para sempre, contra nós próprios e contra a nossa vontade de crescer e de mudar de opinião. Uma vez proferidas, contratuam a nossa vida e impedem-nos de avançar na procura daquilo que é melhor para nós no turbilhão da vida moderna. Os grilhões voluntários são o pior tipo de algemas com as quais nos podemos amarrar. Não nos ferem os pulsos: ferem-nos a alma nos recantos mais obscuros do nosso ser imperfeito e inconstante.
As palavras duras e ácidas corroem relações de uma vida e destroem, para sempre, a hipótese de um novo recomeço. A possibilidade de um arrependimento. Elas provocam mais vítimas a nível planetário do que qualquer guerra internacional. São mais mortais do que as armas de destruição maciça, pois a destruição que provocam almeja o âmago dos sentimentos que consideramos mais sagrados. O seu estrago é imperdoável e a possibilidade de reconstrução fica fora de qualquer cogitação.
Perante estas observações, fruto da passagem dos anos e da devastação que foi ficando pelo caminho, passamos a olhar as palavras com reverência. Cada uma pode marcar o início ou o fim de uma vida.
Quanto à aprendizagem, ela não pode passar apenas pelo mundo do pensamento ou da verbalização. A aprendizagem, processo doloroso e nunca acabado, passa essencialmente pelas experiências vivenciadas. São elas que nos proporcionam as mais valiosas lições de vida. Uma experiência marcante eleva-se acima de um discurso de mil palavras sábias. A sua descarga atinge-nos como um raio inesperado, em pleno dia de céu azul. A impressão causada permanece muito para além da ferida da árvore atingida. É essencial viver muito para se saber muito. A aprendizagem suprema resulta da súmula de vivências que conscientemente procurámos ou que acidentalmente se nos depararam pelo caminho.
Por estas razões, um sábio nunca poderá ser jovem mas um velho, muitas vezes, não atinge a idade da sabedoria.

Café Paul, Place Puget, Toulon
21/08/2009

Ruas de sal

Tenho ruas de sal no meu rosto
E lagos que secaram nos meus lábios.
Pesa-me mais a alma cansada
Do que o corpo envelhecido.
Vou dormir.
Por favor: Não me acordem!

Bom Ano com Fernando Pessoa

NAVEGAR



Navega,
descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.

Admira a Lua, sonha com Ela,
Mas não queiras trazê-la para Terra.

Goza a Luz do Sol,
deixa-te acariciar por Ele,
o calor é para todos.

Sonha com as estrelas, apenas sonha,
Elas só podem brilhar no céu.

Não tentes deter o vento,
Ele precisa correr por toda a parte,
Ele tem pressa de chegar
Sabe-se lá onde...

As lágrimas?...
Não as seques, elas precisam
correr na minha, na tua,
em todas as faces...

O sorriso?
Esse deves segurar,
não deixes ir embora, agarra-o!


Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias,
tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis,
a mais valiosa.


Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira.
conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.


Abre todas as janelas que encontrares
e as portas também.
Persegue o sonho,
mas não o deixes viver sozinho.


Alimenta a tua alma com amor,
cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.


Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.


Dá um sorriso àqueles
que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado,
há alguém que precisa de ti.


Abastece o teu coração de fé,
não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos
e satisfá-los.


Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia
se conseguires tirá-lo também.


Procura os teus caminhos,
mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!


Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.


Enche o teu coração de esperança,
mas não deixes que ele se afogue nela.


Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!


Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.“O mais é nada".


Fernando Pessoa