Nasce Jesus
Tinha chegado a hora. A noite gelava a alma de tão fria e no ar pairava a negritude de um Dezembro invernado. A solidão pesava como um manto que tudo envolve, cobrindo medos e miséria envergonhada. Dentro da barraca de madeira, nua de adornos mas orgulhosa de afectos, jazia Maria das Dores. As pupilas estavam dilatadas e as mãos crispadas torciam um lenço de riscas coloridas, lembrança de um pedaço do seu país. Nele se guardavam as cores e o cheiro de um outro mundo, muito para lá da dor. Ah como ela desejava ter ali a mãe, as irmãs, as tias e as primas! Como ia enfrentar aquele momento sem a solidariedade feminina em seu redor? Sozinha num país de costumes estranhos, sentia-se completamente desamparada. Havia um vazio em forma de crescendo que lhe ia corroendo as entranhas. E a incerteza do rumo a tomar toldava-lhe o discernimento. O que fazer naquela hora?
O José do Nascimento encontrava-se a trabalhar. Era precisar acabar o centro comercial naquela noite, pois a abertura estava marcada para o dia seguinte. Ia ser a inauguração da década, segundo o senhor Baltasar, o encarregado da obra. O Zé carpinteiro, como era conhecido, aparafusava a última viga de madeira no andar superior. Nos pisos inferiores, gambiarras e enfeites berrantes iluminavam a noite fria, prometendo a felicidade eterna aos potenciais compradores. Eles nem desconfiavam que a sua torre de consumo escondia uma Babel de suor e de mãos calejadas. Nem imaginavam que o seu frenesim de tudo ter a qualquer custo impedia trabalhadores humildes de poder passar a noite de Natal com as suas famílias. Não imaginavam ou preferiam não imaginar, protegidos por um desconhecimento que os muralha do exterior…
Maria deixara-se ficar no seu pequeno palácio de desperdícios urbanos até ao último momento. Petrificada entre o medo de abandonar a segurança do pequeno mundo que lhe inspirava segurança e a necessidade, cada vez mais premente, de ser ajudada, não conseguia decidir o que fazer. Se ao menos o seu Zé ali estivesse! E, de repente, um grito irreprimível irrompe da garganta em alvoroço. É uma súplica lancinante que anuncia que a natividade está prestes a acontecer. A dor suplanta o medo do repatriamento, a angústia do desconhecido, o desamparo da falta de uma mão amiga. Nem a falta da folha de bananeira no ventre fértil pode impedir o seu menino de nascer….
Petrov Kaspar está de serviço no hospital em terras lusas. É com orgulho que conseguiu finalmente a equivalência ao seu diploma ucraniano. Labutou cinco anos nas obras, a carregar baldes de massa às costas e a estudar português na sua hora de almoço. Suportou calado o escárnio e a incompreensão de ser mais um estrangeiro a roubar os empregos dos “nossos”. Cicatrizou a alma dorida com música natal, comprada em forma de cassetes piratas ao engajador da sua aldeia. Sonhou acordado com a mulher e os filhos do outro lado do mundo, junto do calor do pequeno calorífero e longe do calor do seu afago. Um dia, quem sabe…
«Doutor Petrov! Mais uma parturiente. Na ficha consta o nome de Aurora, esposa de um tal Belchior Silva, mas eu tenho as minhas dúvidas…. É mais uma ilegal.»
Kaspar olha a enfermeira com um misto de repúdio e de perdão, que vem a meio caminho. Na segurança de um país que não conheceu guerras, fome e perseguições políticas desumanas nas últimas décadas, é tal fácil falar de cor! Para lá das fronteiras de um pequeno país de sol e mar, esconde-se todo um mundo de seres humanos à deriva, divididos entre o que lhes é familiar e os sonhos de um amanhã melhor para os seus filhos.
O médico de serviço apressa-se a acalmar aquela Maria assustada. «Petrov Kaspar, ao seu serviço! Vamos lá tirar esse rapaz.» Há-de ser homem forte, correcto e trabalhador, como o pai, pensa Maria, antes de um derradeiro esgar. Dois gritos de arrepiar e um esventrar de esperanças renascidas.
«É são e escorreito», palavras da estagiária de serviço, ainda extasiada com o milagre da vida que lhe escorre entre as mãos.
Chora a mãe Maria, feliz ao ver o seu menino, prega o pai José, diligente e insuspeito da notícia, desinfecta as mãos Kaspar, sorridente por mais um ser que ajudou a nascer, desliga o telemóvel Baltasar, contente pelo dever cumprido. Quanto ao tal Belchior, nem suspeita que tem mais um filho….
«Como se vai chamar o menino?», inquire a enfermeira chefe.
«Jesus do Nascimento.», responde a mãe orgulhosa.
E assim se cumpre a tradição de mais um Natal na Terra.
Tinha chegado a hora. A noite gelava a alma de tão fria e no ar pairava a negritude de um Dezembro invernado. A solidão pesava como um manto que tudo envolve, cobrindo medos e miséria envergonhada. Dentro da barraca de madeira, nua de adornos mas orgulhosa de afectos, jazia Maria das Dores. As pupilas estavam dilatadas e as mãos crispadas torciam um lenço de riscas coloridas, lembrança de um pedaço do seu país. Nele se guardavam as cores e o cheiro de um outro mundo, muito para lá da dor. Ah como ela desejava ter ali a mãe, as irmãs, as tias e as primas! Como ia enfrentar aquele momento sem a solidariedade feminina em seu redor? Sozinha num país de costumes estranhos, sentia-se completamente desamparada. Havia um vazio em forma de crescendo que lhe ia corroendo as entranhas. E a incerteza do rumo a tomar toldava-lhe o discernimento. O que fazer naquela hora?
O José do Nascimento encontrava-se a trabalhar. Era precisar acabar o centro comercial naquela noite, pois a abertura estava marcada para o dia seguinte. Ia ser a inauguração da década, segundo o senhor Baltasar, o encarregado da obra. O Zé carpinteiro, como era conhecido, aparafusava a última viga de madeira no andar superior. Nos pisos inferiores, gambiarras e enfeites berrantes iluminavam a noite fria, prometendo a felicidade eterna aos potenciais compradores. Eles nem desconfiavam que a sua torre de consumo escondia uma Babel de suor e de mãos calejadas. Nem imaginavam que o seu frenesim de tudo ter a qualquer custo impedia trabalhadores humildes de poder passar a noite de Natal com as suas famílias. Não imaginavam ou preferiam não imaginar, protegidos por um desconhecimento que os muralha do exterior…
Maria deixara-se ficar no seu pequeno palácio de desperdícios urbanos até ao último momento. Petrificada entre o medo de abandonar a segurança do pequeno mundo que lhe inspirava segurança e a necessidade, cada vez mais premente, de ser ajudada, não conseguia decidir o que fazer. Se ao menos o seu Zé ali estivesse! E, de repente, um grito irreprimível irrompe da garganta em alvoroço. É uma súplica lancinante que anuncia que a natividade está prestes a acontecer. A dor suplanta o medo do repatriamento, a angústia do desconhecido, o desamparo da falta de uma mão amiga. Nem a falta da folha de bananeira no ventre fértil pode impedir o seu menino de nascer….
Petrov Kaspar está de serviço no hospital em terras lusas. É com orgulho que conseguiu finalmente a equivalência ao seu diploma ucraniano. Labutou cinco anos nas obras, a carregar baldes de massa às costas e a estudar português na sua hora de almoço. Suportou calado o escárnio e a incompreensão de ser mais um estrangeiro a roubar os empregos dos “nossos”. Cicatrizou a alma dorida com música natal, comprada em forma de cassetes piratas ao engajador da sua aldeia. Sonhou acordado com a mulher e os filhos do outro lado do mundo, junto do calor do pequeno calorífero e longe do calor do seu afago. Um dia, quem sabe…
«Doutor Petrov! Mais uma parturiente. Na ficha consta o nome de Aurora, esposa de um tal Belchior Silva, mas eu tenho as minhas dúvidas…. É mais uma ilegal.»
Kaspar olha a enfermeira com um misto de repúdio e de perdão, que vem a meio caminho. Na segurança de um país que não conheceu guerras, fome e perseguições políticas desumanas nas últimas décadas, é tal fácil falar de cor! Para lá das fronteiras de um pequeno país de sol e mar, esconde-se todo um mundo de seres humanos à deriva, divididos entre o que lhes é familiar e os sonhos de um amanhã melhor para os seus filhos.
O médico de serviço apressa-se a acalmar aquela Maria assustada. «Petrov Kaspar, ao seu serviço! Vamos lá tirar esse rapaz.» Há-de ser homem forte, correcto e trabalhador, como o pai, pensa Maria, antes de um derradeiro esgar. Dois gritos de arrepiar e um esventrar de esperanças renascidas.
«É são e escorreito», palavras da estagiária de serviço, ainda extasiada com o milagre da vida que lhe escorre entre as mãos.
Chora a mãe Maria, feliz ao ver o seu menino, prega o pai José, diligente e insuspeito da notícia, desinfecta as mãos Kaspar, sorridente por mais um ser que ajudou a nascer, desliga o telemóvel Baltasar, contente pelo dever cumprido. Quanto ao tal Belchior, nem suspeita que tem mais um filho….
«Como se vai chamar o menino?», inquire a enfermeira chefe.
«Jesus do Nascimento.», responde a mãe orgulhosa.
E assim se cumpre a tradição de mais um Natal na Terra.
Conto que ganhou o 4º lugar no XXVI Concurso Internacional Literário das Edições AG, no Brasil, 2008
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