quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Passagem do Ano

Deveria escrever algo interessante e único neste último dia do ano. Algo que deixasse uma marca inesquecível. Uma mensagem positiva e inspiradora. Linhas de esperança.

No entanto, levei um tombo recente que me faz transbordar o coração de falta de esperança. Por isso, vou usar de novo as palavras da Pipoca Mais Doce, na continuação da crónica anterior.





Bom Ano de 2010 para todos!


«Décima passa: EU»


Este anovou jantar fora sozinho, pedir

só um bilhete de cinema. Vou passar um

fim-de-semana inteiro de pijama,sem lavar

os dentes antes de dormir. Vou apagar o

teu número de telefone e verter lágrimas

agarrada a um peluche. Vou cortar a franja

e pintar as unhas dos pés na mesa da

sala. Vou aprender espanhol, mandarim,

informática e cozinha do Cambodja. Vou

atravessar o restaurante para dizer que o

miúdo aos berros me tira o apetite. Vou

ver novelas às escondidas, ler romances

pop debaixo dos lençóis. Vou mandar o

bife para trás as vezes que forem precisas,

voz firme, queixo erguido. Vou dizer que não

gostei da prenda, exigir o talão de volta.

Não vou encher o mundo com as minhas

dores, bem basta as dores do mundo».


A Pipoca Mais Doce - O livro

Um belo dia de Outono, por mero acidente (como quase tudo na minha vida), conheci a Ana Garcia Martins, mais conhecida como a bloguista Pipoca Mais Doce.
Fiquei a conhecer o seu blogue e comprei o livro que, segundo a Oficina do Livro, contém «Pensamentos e segredos da rapariga mais invejada de Portugal»
Ouve crónicas que gostei assim assim, outras que gostei de caras e outras que considero que pronunciam uma futura escritora em potência.

Para hoje, e dado que a minha inspiração já teve dias melhores, deixo ficar um trecho de uma crónica que se intitula: «2009: 12 passas para ser feliz». Apesar de um ano volvido, este é o meu desejo para 2010.
«Quarta passa : Nós
Este ano (...)vamos esquecer
as paixões de 2008, de 2007, todas as que
nos espatifam o coração. Não vamos
dizer que o problema somos nós, não eles,
porque às vezes são mesmo eles. Vamos
fingir que nunca dissemos «nunca mais»
e vamos viver tudo de novo. Vamos dizer
«desculpa». Vamos esperá-la com o jantar
feito. Vamos levá-lo à bola. Vamos pedir-
-lhe a chave de casa. Vamos dizer «não
desculpo».

Impostora

Vivo uma vida que não é a minha.
Visto trajes de conveniência
E uso palavras ocas de verdade
Calco aos pés a irreverência
Que me trespassa o ser inteiro
Mordo desejos escondidos, inconfessados
E pairo na realidade inventada
Por todos os que me querem aqui
Sobrevivo aos contratempos,
Hábil fingidora do conformismo
E vou levando os meus dias
Como se não houvesse amanhã.

Serei sempre a do contra
Sem saber o que me perfaz
Na busca do âmago de mim
Vou habitando neste palco da vida
E afirmo, confesso e reitero:
Vivo uma vida que não é a minha.

06/08/2009
Poema e foto de Ana Paula Mabrouk

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Escape


Ao norte

Entre fragas

E vento agreste

Montanhas

E árvores altas

Escrevo a minha biografia

Deixo um tempo

Sem tempo

Em linhas corridas

De uma tarde de sol

Envergonhada.
02-08-2009
Poema e foto de Ana Paula Mabrouk

Dúvida

Não sei se era amor
Ou se amava o amor
Com que me amavas

Não sei se sinto a tua falta
Ou a falta de alguém
Que me faça companhia

Não sei se é preguiça
Estimar a ideia reconfortante
De que alguém pensa em nós

Não sei se é egoísmo
Ficar no seio da concha
Que nos dá guarida no perigo

Não sei se é eterna insatisfação
ou se já nasci assim
Dividida entre o que sou
E aquilo que preciso ser

Não sei onde a vida me vai levar
Às vezes nem sei quem sou
Estou aqui
Mas a minha alma está além.
Sou gente
Mas não sei se sou alguém.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tranquilidade

Neste dias de correria infernal, em que o essencial fica muitas vezes para trás, necessitamos de calma e tranquilidade para podermos tornarmo-nos pessoas melhores. Pare, escute e olhe!

http://www.youtube.com/watch?v=g51grDVfaR4

Ainda Ricardo Agnes

«Ser poeta é criar eternidades

através de olhares infinitos

preso a outras cores»






«Até os sapos podem escrever

um poema ao fim da tarde»






«Sentes-te apertado num verso

porque escreves poemas demais»



«o céu não é um limite
mas sim um tecto falso»




«a lua não se cansa
porque não se lembra
é feliz e dança sozinha»
«Vamos estar vivos
sem pedir autorização a ninguém»

Ricardo Agnes - ...In Descontinuidades da Corpus Editora

Mais um livro que me veio parar acidentalmente às mãos. Confesso que não fiquei fã do estilo, mas retirei algumas máximas que achei interessantes. Aqui vão seis neste post e as restantes no post seguinte.



«O Medo é a sensação prévia do silêncio

o silêncio é o eco da metamorfose»






«as coisas deixam de existir

quando nos esquecemos delas»






«Não é a distância que afastas as pessoas
é a ausência»





«Tens medo de ser feliz por muito tempo
tens medo dos teus segredos
tens medo de pensar numa frase grande
que não caiba no quadro
e escrevê-la na parede
o medo de continuar a ler
depois de um ponto final»



«quero que derretas o meu coração
e o moldes numa bala
capaz de matar a tua solidão»



«esse traço negro nos teus olhos
percebo agora
são resíduos das coisas que vês
tatuagens da vida real»









































sábado, 26 de dezembro de 2009

Em Carne Viva (futura Antologia)

Concluída que está a apresentação dos trinta e três poemas que constituem a futura Antologia Em Carne Viva, resta-me fazer uma espécie de balanço. São poemas que consubstanciam uma determinada época da minha vida e uma determinada paleta de sentimentos que a ela correspondem. São essencialmente poemas virados para um passado algo longínquo, mas que teimava em permanecer em ferida aberta. Esta foi a forma encontrada de sarar essa ferida; o único ungento que conheço que amainou o sofrimento. A partir de agora abre-se uma nova época. Outros sentimentos virão, outras feridas abertas, novos poemas vividos, novos ungentos em forma de escrita. Porque não sei viver de outra forma: sentir como se não houvesse amanhã e sofrer as consequências de querer estar viva....

Cicatriz


A espada violou minha
Carne
A expressão angustiou-se
De dor
A mão célere estancou
Sangue
O coração tremeu de
Pasmo

Em mim
Ficou sarada
A cicatriz;
Em ti
Permanece a ferida
Em carne viva.

Poema nº2 da futura Antologia Em Carne Viva

Um passo...




Um passo.
Alguém vem da noite fria
Devagar caminha até mim
Traz calor e amor enfim
Segredos que inventa e cria.
Mas quê? Assim se afasta
Súbito arrepia caminho?
Não, não vás! Sozinho
Vais também ficar… Basta
Um pouco. Uma solidão
A dois. Um tímido olhar.
Pó de estrelas a cintilar
Numa estreita união.
Poemanº 4 da futura Antologia Em Carne Viva

Castelos de sonhos



Castelos de cartas erguem-se leves ao alto
Castelos de ases, reis e rainhas
Castelos de sorte
Castelos de duques, quinas e senas
Castelos de azar
Castelos da vida tombando a um toque de mão.

Castelos d’areia erguem-se soltos ao alto
Castelos de fina areia, branca e dispersa
Castelos de conchas, algas e espuma
Castelos de vida esboroando-se
Silenciosos
Na rebentação do dia.

Castelos de sonhos erguem-se loucos ao alto
Castelos no ar, de sol e luar
Castelos de nuvens com pó de estrelas
Castelos de vida escoando maresia
Na brisa diáfana do nascer matinal.
Poema nº15 da futura Antologia Em Carne Viva

Pedras soltas



Há pedras soltas
Na poeira dos caminhos.
Jogadas, pontapeadas, largadas.
Soltas pedras
Entre árvores intercaladas
Resistindo ao tempo
Mas ninguém olha.

Há sonhos soltos
Na encruzilhada da vida.
Jogados, pontapeados, largados.
Sonhos soltos
Entre mágoas intercalados
Resistindo ao medo.
Mas ninguém olha.

Há pedras-sonhos soltos
Na poeira da vida.
Jogados, pontapeados, largados.
Soltos sonhos-pedras
Entre árvores e mágoas intercaladas
Resistindo ao tempo
Resistindo ao medo.
Mas ninguém olha.

Poema nº 10 da Futura Antologia Em Carne Viva

Estala coração



Estala coração. Chora
As chagas que dilaceram
Essas veias sem demora
Dessa dor já antiga.

Grita as mágoas agora
De tudo o que te fizeram
O desespero que mora
Nessa dor já antiga.

Assim nesta hora
Que todos esqueceram
Subsiste pela vida fora
Essa dor já antiga.

Poema nº 18 da futura Antologia Em Carne Viva


Amor Secreto


Amo-te em cada dia que jazo sem ti.
Amo-te na ausência do teu corpo.
Amo-te nas noites solitárias.
Amo-te nos dias que correm iguais.
Amo-te no nó da garganta profundo.
Amo-te na lágrima teimosa que desliza.
Amo-te nas borboletas do ventre.
Amo-te para além das lógicas racionais.
Amo-te raivosamente, sem te querer amar.
Amo-te contra mim e meu percurso.
Amo-te sem te poder dizer que te amo.
Amo-te em silêncio e com recato
Por detrás das palavras com que te digo que não te amo.
Amo-te profundamente: hoje e ontem e amanhã.
Amo-te e juro a mim mesma, solenemente,
Que jamais saberás o quanto te amo.



Poema 29 da futura Antologia Em Carne Viva

Fui a Baiona a uma funeral


Fui a Baiona a um funeral.
Tinha um vivo para enterrar
Não sabia se na praias, no areal
Ou nas profundezas do fundo do mar.

Fui a Baiona a um funeral.
Mirei canas sem isco, sós
Revi banhos de riso sem mal
E o prazer que morreu em nós.

Fui a Baiona a um funeral.
As águas permanecem calmas
Os rochedos escondem mel e sal
E os namorados trocam de almas.

Fui a Baiona a um funeral.
Senti na minha pele de mulher
As carícias da brisa matinal
E arpões que o tempo nela fere.

Fui a Baiona a um funeral.
Vagas de sentimentos revoltos
Assaltaram-me como um temporal
Em nuvens de agonia envoltos.

Fui a Baiona a um funeral.
As conchas trazidas pela maré
Vinham vazias, vítimas de vendaval
Mergulhei e senti-me sem pé.

Fui a Baiona a um funeral.
Nas redes antigas fiquei enredada
E mariscos não encontrei, afinal
Só minha barca da vida, afundada.

Fui a Baiona a um funeral.
De lá saíam algas em turbilhão
E lágrimas de vermelho coral
Soltavam-se tristes da embarcação.

Fui a Baiona a um funeral.
Fui de propósito enterrar o passado
Na memória pôr um ponto final
E esquecer aquele navio afundado.

Fui a Baiona a um funeral.
Enterrei a âncora bem fundo
Teci uma coroa de flores artesanal
E despedi-me de um amor profundo.

Fui a Baiona a um funeral.
Mergulhei a pique e por pouco morri
No sofrimento que quase me foi fatal
Limpei as lapas e de novo nasci.

Fui a Baiona a um funeral.
No mar alto, carpi últimas mágoas
Ilusões, resquícios de vida plural
E emergi purificada daquelas águas.

Fui a Baiona a um funeral.
Enterrei o meu vivo. Até que enfim!
Cometi, quiçá, um pecado capital
Mas a força do mar vive agora em mim.
Poema nº 32 da futura Antologia Em Carne Viva
Foto da escritora

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Divagação



Gosto do silêncio.
Diz tanta coisa que eu não digo!
Murmura ao ouvido sussurros de calma
Doçuras de algodão níveo pairando no ar.

E hoje toda a calma do universo
De uma Natureza sem gente
(sem ninguém saber)
É infinitamente minha.

27-01-1986

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Sugestão de leitura

Neste país de circos mediáticos, medíocres, medrosos e medonhos, existe uma voz, pelo menos, lúcida e corajosa. Vale bem a pena ler.

Mário Crespo in Público
O palhaço
O palhaço compra empresas de alta tecnologia em Puerto Rico por milhões, vende-as em Marrocos por uma caixa de robalos e fica com o troco. E diz que não fez nada. O palhaço compra acções não cotadas e num ano consegue que rendam 147,5 por cento. E acha bem.
O palhaço escuta as conversas dos outros e diz que está a ser escutado. O palhaço é um mentiroso. O palhaço quer sempre maiorias. Absolutas. O palhaço é absoluto. O palhaço é quem nos faz abster. Ou votar em branco. Ou escrever no boletim de voto que não gostamos de palhaços. O palhaço coloca notícias nos jornais. O palhaço torna-nos descrentes. Um palhaço é igual a outro palhaço. E a outro. E são iguais entre si. O palhaço mete medo. Porque está em todo o lado. E ataca sempre que pode. E ataca sempre que o mandam. Sempre às escondidas. Seja a dar pontapés nas costas de agricultores de milho transgénico seja a desviar as atenções para os ruídos de fundo. Seja a instaurar processos. Seja a arquivar processos. Porque o palhaço é só ruído de fundo. Pagam-lhe para ser isso com fundos públicos. E ele vende-se por isso. Por qualquer preço. O palhaço é cobarde. É um cobarde impiedoso. É sempre desalmado quando espuma ofensas ou quando tapa a cara e ataca agricultores. Depois diz que não fez nada. Ou pede desculpa. O palhaço não tem vergonha. O palhaço está em comissões que tiram conclusões. Depois diz que não concluiu. E esconde-se atrás dos outros vociferando insultos. O palhaço porta-se como um labrego no Parlamento, como um boçal nos conselhos de administração e é grosseiro nas entrevistas. O palhaço está nas escolas a ensinar palhaçadas. E nos tribunais. Também. O palhaço não tem género. Por isso, para ele, o género não conta. Tem o género que o mandam ter. Ou que lhe convém. Por isso pode casar com qualquer género. E fingir que tem género. Ou que não o tem. O palhaço faz mal orçamentos. E depois rectifica-os. E diz que não dá dinheiro para desvarios. E depois dá. Porque o mandaram dar. E o palhaço cumpre. E o palhaço nacionaliza bancos e fica com o dinheiro dos depositantes. Mas deixa depositantes na rua. Sem dinheiro. A fazerem figura de palhaços pobres. O palhaço rouba. Dinheiro público. E quando se vê que roubou, quer que se diga que não roubou. Quer que se finja que não se viu nada.

Depois diz que quem viu o insulta. Porque viu o que não devia ver.

O palhaço é ruído de fundo que há-de acabar como todo o mal. Mas antes ainda vai viabilizar orçamentos e centros comerciais em cima de reservas da natureza, ocupar bancos e construir comboios que ninguém quer. Vai destruir estádios que construiu e que afinal ninguém queria. E vai fazer muito barulho com as suas pandeiretas digitais saracoteando-se em palhaçadas por comissões parlamentares, comarcas, ordens, jornais, gabinetes e presidências, conselhos e igrejas, escolas e asilos, roubando e violando porque acha que o pode fazer. Porque acha que é regimental e normal agredir violar e roubar.

E com isto o palhaço tem vindo a crescer e a ocupar espaço e a perder cada vez mais vergonha. O palhaço é inimputável. Porque não lhe tem acontecido nada desde que conseguiu uma passagem administrativa ou aprendeu o inglês dos técnicos e se tornou político. Este é o país do palhaço. Nós é que estamos a mais. E continuaremos a mais enquanto o deixarmos cá estar. A escolha é simples.

Ou nós, ou o palhaço.

Poema nº 28 da Antologia Em Carne Viva

Insónia


O tecto é branco
O chão é cinzento

As paredes são quatro
Os quadros são cinco

A cama é alta
O candeeiro é baixo

O silêncio é de ouro
A palavra é de prata

A folha de papel é pautada
O bloco de notas é quadriculado

O quarto tem 75 tacos
O roupeiro tem 17 prateleiras

O lençol é de linho
A colcha é de seda

A porta está aberta
A janela está fechada

O tecto é branco
O chão cinzento é.



Poema e fotografia de Ana Paula Mabrouk

Para quem ama os livros

Este blogue destina-se apenas a quem ama os livros. Lá se encontram gravuras, pinturas, esboços e muitos, muitos livros.

Boa leitura.

http://www.osilenciodoslivros.blogspot.com/

domingo, 13 de dezembro de 2009

Morre lentamente quem não viaja

Aqui vão alguns conselhos sábios de Pablo Neruda sobre como viver a vida em plenitude. Espero que aproveitem.






"Morre lentamente quem não viaja,

Quem não lê,

Quem não ouve música,

Quem destrói o seu amor-próprio,

Quem não se deixa ajudar.



Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,

Repetindo todos os dias o mesmo trajecto,

Quem não muda as marcas no supermercado,

Não arrisca vestir uma cor nova,

Não conversa com quem não conhece.



Morre lentamente quem evita uma paixão,

Quem prefere O "preto no branco"

E os "pontos nos is" a um turbilhão de emoções indomáveis,

Justamente as que resgatam brilho nos olhos,

Sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.



Morre lentamente quem não vira a mesa

Quando está infeliz no trabalho

Quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho,

Quem não se permite,

Uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.


Morre lentamente quem passa os dias

Queixando-se da má sorte ou da chuva incessante,

Desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,

Não perguntando sobre um assunto que desconhece

E não respondendo quando lhe indagam o que sabe.


Evitemos a morte em doses suaves,

Recordando sempre que estar vivo

Exige um esforço muito maior do que o

Simples acto de respirar.

Estejamos vivos, então!"


Pablo Neruda

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Rei Mouro




Num país à beira-mar plantado
Começa uma história banal
No centro de uma grande cidade
Em plena época de Natal.

Trata-se de um presépio vivo
De três pessoas composto
De um pequeno rei negro
Concebido bem a gosto.

Mares e oceanos cruzaram
Engoliram fome e fel
Montando finalmente tenda
Em terras de leite e mel.

O pai, carpinteiro de profissão,
Ou não estivéssemos no Natal
Cedo encontrou nesta Babilónia
Torre na qual trabalhar.

Era um futuro centro comercial
Onde gambiarras de mil cores
Prometiam a felicidade eterna
Aos potenciais compradores.

Nem sequer imaginavam
Que a viga de madeira sustenta
O fruto do trabalho árduo
Que a loja de marca ostenta.

A Mãe, de seu nome Maria
Vive num palácio urbano decorado
De zinco, plástico e tijolo
Juntinha do seu bem amado.

Apenas as seringas espalhadas
Em volta do seu exíguo estendal
Entre linguajares desconhecidos
Lhe lembram a face do mal.


Vive entre o medo de regressar
E a esperança secreta de permanecer
Da terra natal as saudades
Os sonhos na terra do renascer.

É rainha mãe de um monarca
Promessa de um futuro melhor
Não é Jesus de Belém
Mas noutro deixará sua cor.

É já final de dia invernoso
Quando o sol abraça o mar
À porta assoma a mãe aflita
Em plenos pulmões a gritar.

É a cultura crioula que afirma
Que só há um modo de parir
Das veias de sangue quente
Voz alta terá que se ouvir.

Uma vizinha em socorro acode
Depressa um carro ao hospital!
Não posso, chora a pobre Maria
Aqui não sou mãe: sou ilegal!

Mulher, deixa lá isso agora
Teu filho merece o melhor
Vais dar o nome de Aurora
Mulher de meu irmão Belchior.

Lá foram as duas vizinhas
Num chasso velho a gemer.
Não sei quem gemia mais alto:
Se o carro ou se a mulher...

Pela primeira vez na vida
Maria está deveras assustada
Não tem ninguém a seu lado
Nem mãe, marido ou cunhada.

Petrov Kaspar, ao seu serviço
Vamos lá tirar esse rapaz
Há-de ser um homem forte
Saudável, inteligente e sagaz.

Entre gritos lancinantes
De qualquer um arrepiar
Sem folha de bananeira
Faz ela um último esgar.

Já cá fora o garoto
São e escorreito, garante
O médico russo a sorrir
À cabo-verdiana diletante.

Avisem o Sr. Baltasar
Patrão do Zé carpinteiro
Que este já cá tem um filho
Com carapinha e sem dinheiro.

Cabelos louros não tem
Nem mirra, incenso ou ouro
Mas tenho a certeza que vem
Ao mundo em versão de rei mouro.

Não sei se fábula será
Esta minha história banal
Só sei que aconteceu um dia
Quase em vésperas de Natal.

Versão em verso do conto Nasce Jesus
Ana Paula Mabrouk

Não me peças que te ame

Não me peças que te ame.
Tudo menos isso.
Pois não foi isso que fiz a minha vida inteira?
Amar-te infinitamente?
Ai de mim que sou finita!
Derrubar as barreiras do tempo, da distância, da agonia.
Amar-te sempre, contudo, ainda que e todavia.
Amei-te tanto que me esqueci de me amar.
E tu? Amaste-te tanto que te esqueceste de me amar.
A vida é assim. As palavras são vãs e os actos prementes.
As palavras atropelam os sonhos, queimam as asas.
Os actos saram os corações em chama.
De tanto te amar, acabei por te perder.
Por isso não me peças que te ame. Outra vez não!


Poema nº 25 da Antologia Em Carne Viva

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Antologia Poiesis

Informo amigos e inimigos que irei fazer parte do volume XIX da Antologia Poiesis, que será lançada no dia 27 de Fevereiro de 2010, em Lisboa.
Para mais informações consultem o endereço em baixo.

http://antologiapoiesis.blogs.sapo.pt/

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Nasce Jesus

Com Dezembro chega o Natal, para muitos símbolo do consumismo exarcebardo. Pai Natal, presentes, Árvore de Natal, luzes, exibicionismo. Então e o presépio?

Nasce Jesus

Tinha chegado a hora. A noite gelava a alma de tão fria e no ar pairava a negritude de um Dezembro invernado. A solidão pesava como um manto que tudo envolve, cobrindo medos e miséria envergonhada. Dentro da barraca de madeira, nua de adornos mas orgulhosa de afectos, jazia Maria das Dores. As pupilas estavam dilatadas e as mãos crispadas torciam um lenço de riscas coloridas, lembrança de um pedaço do seu país. Nele se guardavam as cores e o cheiro de um outro mundo, muito para lá da dor. Ah como ela desejava ter ali a mãe, as irmãs, as tias e as primas! Como ia enfrentar aquele momento sem a solidariedade feminina em seu redor? Sozinha num país de costumes estranhos, sentia-se completamente desamparada. Havia um vazio em forma de crescendo que lhe ia corroendo as entranhas. E a incerteza do rumo a tomar toldava-lhe o discernimento. O que fazer naquela hora?

O José do Nascimento encontrava-se a trabalhar. Era precisar acabar o centro comercial naquela noite, pois a abertura estava marcada para o dia seguinte. Ia ser a inauguração da década, segundo o senhor Baltasar, o encarregado da obra. O Zé carpinteiro, como era conhecido, aparafusava a última viga de madeira no andar superior. Nos pisos inferiores, gambiarras e enfeites berrantes iluminavam a noite fria, prometendo a felicidade eterna aos potenciais compradores. Eles nem desconfiavam que a sua torre de consumo escondia uma Babel de suor e de mãos calejadas. Nem imaginavam que o seu frenesim de tudo ter a qualquer custo impedia trabalhadores humildes de poder passar a noite de Natal com as suas famílias. Não imaginavam ou preferiam não imaginar, protegidos por um desconhecimento que os muralha do exterior…

Maria deixara-se ficar no seu pequeno palácio de desperdícios urbanos até ao último momento. Petrificada entre o medo de abandonar a segurança do pequeno mundo que lhe inspirava segurança e a necessidade, cada vez mais premente, de ser ajudada, não conseguia decidir o que fazer. Se ao menos o seu Zé ali estivesse! E, de repente, um grito irreprimível irrompe da garganta em alvoroço. É uma súplica lancinante que anuncia que a natividade está prestes a acontecer. A dor suplanta o medo do repatriamento, a angústia do desconhecido, o desamparo da falta de uma mão amiga. Nem a falta da folha de bananeira no ventre fértil pode impedir o seu menino de nascer….

Petrov Kaspar está de serviço no hospital em terras lusas. É com orgulho que conseguiu finalmente a equivalência ao seu diploma ucraniano. Labutou cinco anos nas obras, a carregar baldes de massa às costas e a estudar português na sua hora de almoço. Suportou calado o escárnio e a incompreensão de ser mais um estrangeiro a roubar os empregos dos “nossos”. Cicatrizou a alma dorida com música natal, comprada em forma de cassetes piratas ao engajador da sua aldeia. Sonhou acordado com a mulher e os filhos do outro lado do mundo, junto do calor do pequeno calorífero e longe do calor do seu afago. Um dia, quem sabe…

«Doutor Petrov! Mais uma parturiente. Na ficha consta o nome de Aurora, esposa de um tal Belchior Silva, mas eu tenho as minhas dúvidas…. É mais uma ilegal.»
Kaspar olha a enfermeira com um misto de repúdio e de perdão, que vem a meio caminho. Na segurança de um país que não conheceu guerras, fome e perseguições políticas desumanas nas últimas décadas, é tal fácil falar de cor! Para lá das fronteiras de um pequeno país de sol e mar, esconde-se todo um mundo de seres humanos à deriva, divididos entre o que lhes é familiar e os sonhos de um amanhã melhor para os seus filhos.

O médico de serviço apressa-se a acalmar aquela Maria assustada. «Petrov Kaspar, ao seu serviço! Vamos lá tirar esse rapaz.» Há-de ser homem forte, correcto e trabalhador, como o pai, pensa Maria, antes de um derradeiro esgar. Dois gritos de arrepiar e um esventrar de esperanças renascidas.
«É são e escorreito», palavras da estagiária de serviço, ainda extasiada com o milagre da vida que lhe escorre entre as mãos.
Chora a mãe Maria, feliz ao ver o seu menino, prega o pai José, diligente e insuspeito da notícia, desinfecta as mãos Kaspar, sorridente por mais um ser que ajudou a nascer, desliga o telemóvel Baltasar, contente pelo dever cumprido. Quanto ao tal Belchior, nem suspeita que tem mais um filho….
«Como se vai chamar o menino?», inquire a enfermeira chefe.
«Jesus do Nascimento.», responde a mãe orgulhosa.
E assim se cumpre a tradição de mais um Natal na Terra.

Conto que ganhou o 4º lugar no XXVI Concurso Internacional Literário das Edições AG, no Brasil, 2008



Chama da vida


Poesia é chama ardente
É doce, meiga e dorida
Crepita dentro da gente
E ateia a chama da vida.

Inflama, queima e arde
Tudo consome e agita
Gera nova forma d’arte
Braseiro na alma crepita.

Crepita dentro da gente
Labareda inspirada
Poesia é chama ardente
Doce letra derramada.

Dá à vida emoção
Muda dor em ledo canto
Ateia no coração
Versos dum outrora pranto.

Vivo assim vidas mil
Sou da vida foragida
Poeta sábio, e gentil
Em verso vivo contida.

Contida tenho segredo
Neste prazer fulgurante
Poesia, verbo ledo
Dita em ritmo pulsante.

É doce, meiga e dorida
Incendeia o meu ser
E ateia a chama da vida
Acende em mim o viver.
Ana Paula Mabrouk

sábado, 5 de dezembro de 2009

Livro Ferida Aberta de Jorge Sousa Braga

Poema Mulher

Metade mulher metade pássaro
metade anémona metade névoa

Metade água metade mágoa
Metade silêncio metade búzio

Metade manhã metade fogo
Metade jade metade tarde

Metade mulher metade sonho


Nunca escolhi um livro para ler: sempre foram os livros que me escolheram a mim.
Isso mesmo aconteceu com este livro de Jorge Sousa Braga. Uma amiga em comum e o gosto pela escrita e pela leitura.
É um livro diferente escrito por um ginecologista, explicitamente sensual, anatómico e sexual. Um livro que pode chocar algumas sensibilidades mas que desnuda realidades em forma de romã granada, lótus em flor ou borboleta só com asas. Recomendado aos mais afoitos.
Quanto a mim, encantou-me este poema inaugural: um hino à mulher, sem dúvida.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Poema para a poetisa galega Àsun Estevez



À Asun Estevez

Mulher cativa
Do mar imenso
Filha do vento
Tatuada a liberdade.

És borboleta
Lua cheia
Menina guerreira
Laranjeira em flor.

Pernas de trapo
Dizias ter um dia
Duras penas
Mágoas sentidas
De quem ri
Para não chorar.

Mas eis que encontraste
Poesia companheira
Bálsamo de estrelas
Beijos de sal
Mãos e boca
Nessa pele de mulher.

Do peito desnudo
Floriu um jardim
Desejo intenso
De quem não sente frio.

Experimentaste.
Ousastes.
Rasgaste.
Soltaste.
Voaste.

O mundo é de facto imenso
E tu sabes navegar.


Ana Paula Mabrouk
05/05/09

Comentário pessoal ao livro Auto dos Danados

Antunes, António Lobo, Auto dos Danados, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985


Livro do desencanto, no qual a degradação das pessoas, das coisas e dos preceitos é o tema principal. È através da história de uma família de Monsaraz que esta degradação nos é dada. Existem vários narradores, membros da família ou com ela relacionados, que nos contam, cada qual, uma parte da história. Reunindo todas essas partes temos a história completa. O ritmo e a sequência lógica dos pensamentos dos narradores são constantemente interrompidos pela realidade quotidiana, ela própria fruto de uma análise subjectiva. Podemos dizer que o livro é de facto psicológico. O fluxo narrativo não é cronológico, pois existem constantes divagações e intercessões no ritmo narrativo. As prolepses relativas ou totais, assim como as analepses, são muito frequentes, dificultando a apreensão do conteúdo e do fluir da história. O próprio decadentismo está patente na linguagem (calão). A linguagem tem associações muito originais e inesperadas, que dão um tom característico ao livro. Predomina o discurso indirecto, embora geralmente não assinalado
As personagens são todas elas apresentadas como monstros, com os seus lados negativos salientados. Uma família onde reina a ganância sem limitações, à espera da morte do avô, para se apoderar da herança. Na realidade, não existe herança nenhuma, pois o avô derreteu-a em casinos, mulheres e na tentativa de cura de dois dos seus filhos doentes (deficientes mentais). É por esta acumulação de dívidas que todos tentam roubar todos, na esperança de se tornarem os únicos herdeiros. O único elo de ligação que parece existir é-nos dado pelo tio, que dormiu com todas as mulheres da família. A perversão sexual e a exploração deste tema atravessam e são uma constante em todo o livro. Tudo e todos são profanados: o avô moribundo, a mongolóide… Os poucos apontamentos positivos emanam de algumas personagens femininas, como a prima do Outeiro, Lurdes. Elas parecem representar uma pequena parcela da mulher portuguesa típica: as mulheres indefesas e solitárias que aprenderam a contar só consigo próprias, num estoicismo algo perpendicular. Elas representam o matriarcado que caracteriza Portugal.


26-08-2008

Álbum de recordações

Álbum de recordações




Está trancado num caixote robusto, selado com fita adesiva, extra-forte. Acorrentei-o para ele não fugir, de repente. Foi fechado com cadeado à prova de evasão. Escondi-o num sótão velho, empoeirado. Está afastado da luz do dia, num recanto escuro. Mergulhei-o no esquecimento dos dias atarefados. Está aferrolhado a sete chaves, com código numérico. Lacrei-o com cera vermelha, sangue do meu sofrimento.
Na capa tem inscrito «O Meu Álbum de Recordações». São memórias dos momentos felizes ou pseudo-felizes. Felizes, certamente, na ignorância do futuro incerto. Felizes na ânsia de agarrar os instantes nos quais sorria, mesmo quando chorava por dentro.
Vou deixar que as aranhas tecem as suas teias; sinal da passagem do tempo. Esperar que o cartão envelheça lentamente, como eu, mas longe de mim. Adivinhar as páginas amarelecidas e não folheadas. Pressupor a humidade a colar instantâneos e a arruinar o colorido das estampas. Deixar morrer em mim memórias que sagram e que não deixam cicatrizar feridas antigas.
Vou deixá-lo lá, bem apartado de mim e da tentação de o abrir. Longe do masoquismo de rememorar outros tempos, outros cenários. Vou lavar da memória contornos e traços fixados de um rosto que conhecia, ao pormenor do tacto e dos afectos. Vou arrancar do peito, a ferros, as mágoas profundas de não ter conseguido expurgar do corpo e da alma e da vontade aquele que continua a insinuar-se nos sonos mal dormidos.
Vou dormir sobre o assunto, uma eternidade se preciso for, e tentar acordar noutra vida, amnésica e abençoada pelo vazio do passado. E à noite, antes de dormir, orar Àquele-que-tudo-sabe para que apague, definitivamente, todas as recordações gravadas nas veias.
Esquecer, apagar, olvidar. Falo de mim e para mim, é claro!

Ana Paula Mabrouk
04-07-2001