No Reino de Portugal e dos Allgarves
Era uma vez um reino muito distante, em forma de pequeno rectângulo, engolido por todos os lados, menos por um, por outro rectângulo maior e bem mais vistoso. No final da geometria, era um rectângulo sem importância de monta.
Como rei todo-poderoso, era monarca deste reino Sua Majestade El-Rei Pinócrates I. Era um rei algo bizarro que havia conquistado o trono quando todos os seus súbditos se encontram distraídos num torneio medieval de Pé-na-bola. Forjou discretamente um édito real e, com artes de Circe, auto-elegeu-se soberano. Pasmem os céus e a Terra!
O rei tinha qualidades mil: desenhava palácios inusitados a até falava a língua de Shakespeare, na versão técnica, curso intensivo tirado num fim-de-semana, entre uma inspecção aos poços do reino e uma caçada aos gambozinos. Havia apenas um senão: ninguém no reino da rainha Nunca-mais-morres entendia um só vocábulo de tão original linguarejar… Ofendido com tamanha iliteracia da ralé, vociferava que se consultassem os doutos pergaminhos. E enquanto isso o seu nariz crescia.
O monarca travava guerras sangrentas com éditos mil contra a burocracia vigente e decretou, sem mais delongas, uma carta magna, pomposamente apelidada de Simplex. Havia apenas um problema: insignificante, é claro. Quem pretendia jogar por esta cartilha, deparava-se com manuscritos tais que todos decidiram mudar-lhe o nome para Complex. E o nariz ia crescendo.
Era um suzerano ambicioso que tinha em mente incentivar as artes e ofícios do seu território. Na Rua dos Onzeneiros, orgulhava-se de desfilar com o seu séquito real. As aias e as meretrizes bem diziam que o rei ia nu, mas os espelhos do reino haviam sido todos estilhaçados. Ordem de Sua Alteza Real, Pinócrates I. Lembrava-se bem da história da Branca de Neve e da sua tenebrosa madrasta. Não, nem pensar! Este rei não queria cá desses feitiços. Pozinhos mágicos, só os seus, que mandava ali era ele, pois então! A ralé bem mendigava uma esmolita, clamando, de quando em vez, numa voz ténue e medrosa, por justiça. Injuriavam os Mouros, os Castelhanos e os Ianques; culpavam o Tesoureriro-mor, mas lá continuavam, obedientemente a laborar nos terrenos do reino. O rei, do alto da sua tribuna, vociferava: era um incompreendido! Se gastava o erário régio a ajudar os pobres dos Onzeneiros, como poderia ele acudir aos necessitados? Ele tinha uma corte para sustentar. Uma «fora-de-praia» aqui, outra «fora-de-praia» acoli, numa ilha de qualquer rei sapiente, qualquer rei, que se preze, tem que ter! E lá ia mandando os escribas registar exactamente o contrário. E o nariz sempre a crescer.
Sua Alteza Real habitava num faustoso palácio, conquistado com ardis mercantices e sábio uso dos impostos do Terceiro Estado. Sonhava ser Robim dos Bosques e acabara sendo Xerife de Nottingham! Com os dobrões de ouro, sonegados a fio de espada, vivia rodeado de convivas do reino da Rainha Nunca-mais-morres. Eram Bretões expeditos, nobremente convidados para explorar os domínios dos outrora fielmente aliados. Havia portos livres de impostos e livre circulação de pessoas e carruagens. Os comparsas deste rei eram todos detentores de magníficos castelos, cheios de sacos azuis do vil metal. Escondiam-nos tão bem escondidos, que nem o Rei Pinócrates I sabia bem o quanto os cofres reais eram saqueados.
Mas sempre ia vociferando que era preciso apertar o cinto, e o Zé Povinho, que já nem cinto tinha, agarrava-se aos andrajos que trazia, rotos e puídos, não vislumbrava pão com que dar forma aos ossos proeminentes. E o nariz do rei continuava a crescer…
Do alto do seu palácio de Belém, qual redentor do mundo, mirava sobranceiro o seu reino, a perder de vista. O rei usava lupa de aumentar em segredo, mas isso ninguém sabia. Havia apenas um pequeno território insular que o preocupava pois constava que um súbdito seu se arrogava o título de Rei do Entrudo. Descaramento só punível com cem chicotadas. Castigo eternamente adiado, pois os algozes eram anões ao pé do gigante Adamastor, que vomitava fogo ao mínimo sinal de que o seu território estava ameaçado. E fazia sinais de fumo numa língua admirável e ainda mais incompreensível do que aquela que o rei falava.
O altivo monarca era fervoroso adepto dos reis de antigamente. Ai que saudades de uns bons açoites e de uma fogueira em praça pública! Mandaria todos os almocreves piolhosos e mal-dizentes ao castigo da carne. Mas os conselheiros do reino, sempre cautelosos e ciosos de não perder a cadeira, num reino no qual já houvera reis que dela caíram, com consequências nefastas, receitavam mezinhas para acalmar os ânimos.
Como ainda não tinha descoberto a fórmula certa para promulgar as leis que lhe permitissem assegurar um reinado eterno, contratava trovadores e bobos para entreterem a corte e as multidões amotinadas. Nos serões de cantigas de escárnio e maldizer, convidava reis absolutos e monarcas absolutistas para ter personalidades à altura dos seus ambiciosos projectos e personalidade irradiante. O seu mais fiel aliado, cavalgava amiúde por vales e montanhas, no seu alazão negro, de nome El Condor Pasa. Esse sim, era um rei como mandava a lei, a ordem e os bons costumes. Um reino com uma corte leal e submissa, agradecida ao grande monarca iluminado, que até cantava e dançava enquanto distribuía palhotas. Um dia, ai um dia, ainda havia de fazer o mesmo no reino da Pinocolândia! E enquanto matutava nesta estratégia, ia oferecendo ardósias com nome de um grande navegador, anunciando justiça e prosperidade para todos. Enquanto a arraia-miúda se distraía com as gravuras multicolores, o nariz do seu rei crescia e crescia.
Sua majestade não tolerava a contestação e tencionava mandar eternamente para as masmorras os inimigos do reino. Os maiores amotinados era um grupo de escribas desobedientes, que teimavam resistir, agora e sempre, ao inimigo. Era uma verdadeira praga aquele punhado de ratazanas que sabia ler e escrever. Difundiam campanhas negras e difamatórias de um rei que apenas tinha por missão servir! Ao exílio! Para a selva do rei aliado! Lá nunca mais abririam a boca nem pegavam na pena. Só se fosse na pena de morte. E parlamentava com os escribas, tentando convencê-los a assinar éditos reais que os condenassem ad eterno. Mas o problema era que os escribas sabiam mesmo ler e não caíam, facilmente, nos ardis de tal Pinóquio. E o seu nariz não parava de crescer!
Eis então que um dia, na província dos Allgarves, território de grandes riquezas, o maior grupo de estrangeirados, se rebelou de repente. Eram saxões fortes, arrogantes e de barba rija. Já estavam fartos que um rei desnudo ousasse comandar os seus destinos e julgar as suas acções. Mandaram chamar um enviado secreto da rainha Nunca-mais-morres que, em menos de nada, organizou uma revolução elitista que derrubou o Rei Pinócrates, que nem teve tempo de abrir a boca. Foi uma revolução pacífica, pois neste reino de povo que ladra mas nunca morde, o único obstáculo era mesmo o nariz do altivo monarca. Eis então que os bárbaros do norte tiveram uma brilhante ideia: convocaram lenhadores de todos os cantos do reino e, à força de valentes machadadas, deceparam o famoso apêndice. Com a madeira obtida, fizeram uma jangada de pau oco e enviaram os habitantes do reino para o mar alto, em busca de um novo reino, sem soberanos, nem súbditos. Consta que até hoje essa jangada anda à deriva, sem rei, nem lei.
Quanto ao Rei Pinócrates I, exilou-se no país do Grande Irmão e vive à grande e à americana, na sua hacienda, fortemente guardada pelos clones que teimaram em não descolar da sua sombra.
Fábula da fábula: nunca invoques Némesis em nome da governação.
Ana Paula Mabrouk
08-03-2009
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