Conto
Tema: Idade não é velhice
Dona Lucindinha
Levantei-me cedo como é meu apanágio. Quem já muito viveu, dorme tranquilo no fim do caminho. Já fiz as pazes com a vida. Mares e tempestades o meu batel enfrentou. Está ancorado agora no areal da praia, voltado para o infinito. A pintura está desbotada, mas a estrutura ainda enfrenta, orgulhosa, as noites invernosas e as tardes de estio. Sou prova viva de décadas de resistência em vagas alterosas e baixios traiçoeiros. Os meus remos repousam em terra, mas o meu espírito paira no mar.
Esgueirei-me da cama, desperta e tranquila. Faço hoje oitenta anos. Olhei-me ao espelho do toucador e não vi os papos nem as rugas, nem as sardas das mãos ossudas. Vi apenas aqueles olhos de menina reguila a troçarem de mim, do outro lado da vida. Eram os mesmos olhos que sorriam matreiros quando pregava partidas às minhas irmãs. Os mesmos que catrapiscavam os moços nas festas da aldeia. Ainda aqueles que casaram contra a vontade dos pais austeros. Sempre aqueles que percorreram mundo em busca de mais e nunca deixaram que o mundo lhe roubasse o brilho de menina inconformada. Meus olhos são os de gaiata sem idade. Por detrás dos anos do corpo, permanecem estes espelhos da alma que nunca perderam a mocidade. Pisquei um olho atrevido à imagem reflectida que me devolveu um olhar trocista. Era uma boa forma de começar este dia.
Como era hábito, a minha primeira atenção foi para o Dom Bigodes, o meu siamês. Companheiro de uma vida, deu-me uns bons dias melosos, roçando as minhas pernas desnudas. Falei-lhe com afecto, daquele que só se partilha com quem habita os nossos dias. E ele, que tudo ouvia e entendia, retribuiu-me a conversa com um miado prolongado, como quem entoa um Parabéns a Você, adequado à solenidade da ocasião. Afaguei-lhe o pêlo em sinal de agradecimento e reforcei a sua dose diária.
Entrei na casa-de-banho, lavei o corpo franzino e passei em seguida para o quarto. Vesti-me, penteei-me sem pressa e maquilhei-me a rigor. Uma senhora será sempre uma senhora. Depois de convenientemente arranjada, fui cumprimentar a família e os amigos.
Peguei na foto do Coronel, levei-a suavemente aos lábios carmim, dizendo-lhe alegremente «Bom dia, meu querido!» Ele, impecável, no seu uniforme aprumado, devolveu-me o olhar ternurento. Em seguida, o retrato dos meus pais, tirado em dia de festa. Os dois, lado a lado, sempre unidos em todas as ocasiões. Passei a mão com carinho pela foto amarelecida, agradecendo a vida e a sabedoria que me haviam dado. Apesar dos conflitos, a espinha dorsal do que era verdadeiramente importante nunca se perdera. O retrato da minha irmã Rosa, que partira há cinco anos, sorria ainda mais do que o habitual, neste dia auspicioso. «Bom dia, também para ti, minha doce consciência». A minha amiga Maria do Carmo, rodeada pelas amigas do chá das cinco do Café Central, cumprimentou-me efusivamente do retrato colorido. Quase podia ouvir a sua gargalhada sadia a acompanhar a frase que sempre me repetia: «Olá, miúda! Como vão esses ossos?» «Vão bem, irmã do coração!» Como gosto de conversar com ela! Como me divirto com a sua tagarelice animada!
Depois dos cumprimentos matinais, pus a mesa na varanda soalheira e tomei o pequeno-almoço vagarosamente. Privilégio de pessoa madura. Estava um dia radiante e cúmplice. Deixei os raios de sol afagarem o meu rosto tisnado de avó obstinada em continuar a viver na sua casa. Senhora do seu nariz. Resistira às investidas do filho e das assistentes sociais. Enquanto tiver vida e saúde, hei-de ser a comandante do barquito da minha vida. Não me sinto velha! Nunca me senti. Tenho tanta coisa boa a lembrar, tanta coisa importante para fazer, tantos amigos que gostam de mim. Como poderia algum dia perder a mocidade?
No Centro de Dia, há filhas das minhas amigas, mais velhas do que eu…Carregam nas costas uma vida de imposições e de obrigações que nunca quiseram e que lhes acentua os anos. Não têm nos olhos o brilho daquela imagem que vejo reflectida no espelho do toucador…
Depois de tudo arrumado, dirigi-me finalmente ao Centro e passei uma manhã de conversa animada com os outros utentes. A minha família de eleição. Falámos das memórias, mas também das novidades da televisão, da política nacional, do namoro do Sr. António com a Dona Gertrudes e do casamento da neta do Sr. Engenheiro. Foi cá uma algaraviada!
Da família biológica, também não faltaram os mimos. Primeiro foi o telefonema do Brasil, do meu filho João. Deu-me os parabéns, mandou beijos do resto da família e perguntou se eu tinha gostado do vestido rosa bebé que me enviara a semana passada. Disse-lhe que o tinha vestido. Mesmo antes do almoço, a Dona Teresinha, uma das enfermeiras, chamou-me ao computador da sala para me mostrar o meu neto Filipe. Todo bronzeado, lá do outro lado da Austrália, com uma moça de olhos azuis ao lado, a dar-me os parabéns em inglês. É um belo rapaz, este meu neto. Conversámos como de costume, como se a distância fosse apenas um mero pormenor sem qualquer importância. Não importa o local onde estamos; o que importa de verdade são os corações que habitamos. Essa é a nossa história que vale a pena ser escrita.
O pessoal do Centro foi inexcedível. Fizeram um almoço especial e um bolo gigantesco com duas velas, com um oito e um zero dourados. A minha irmã Adozinda apareceu na altura certa e foi uma alegria! Houve cantoria, algazarra sénior à mesa e direito a prendas. Não me ofereceram meias de lã, nem camisas de noite, nem xailes de tricot. Ofereceram-me um livro de poemas, um batom hidratante e um CD de êxitos dos anos quarenta. Ouvimo-lo logo em seguida, cantámos e dançámos até as forças permitirem. Foi um dia alegre e divertido.
Depois do jantar, despedi-me da minha irmã, dos amigos de todos os dias e fui para casa de alma lavada e coração pleno. O Sr. Director fez questão de me levar a casa no seu carro elegante. Senti-me uma verdadeira princesa no meu vestido rosa bebé, com um bouquet de tulipas a condizer, oferecidas gentilmente por ele. O Sr. Director, cavalheiro até ao fim, acompanhou-me até à porta do meu apartamento aconchegado e despediu-se com um piropo «Quem disse que idade é velhice, Dona Lucindinha?» «Pois é, Sr. Director, quem disse?»
Nesse dia dormi como um anjo e sonhei com todas as coisas que queria fazer até ao dia de celebrar oitenta e um anos de vida.
Menina e moça
3º Prémio na categoria de conto nos VII Jogos Florais Avis 2009
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