sexta-feira, 26 de março de 2010

Outro conto rural

UMBELINA


Ti Umbelina era uma dessas pobres mulheres do campo: calada" abnegada" conformada com o seu destino. Toda a vida havia trabalhado nas terras. Primeiro fora criada de servir ( mas de fora) em casa de gente rica. De lá saíra para casar com um criado, também de servir, da quinta vizinha. Nunca tinha conhecido homem antes, nem sequer tinha consentido num beijo roubado. Era mulher séria, pois então. Viveu o dia do seu casamento com aflição, sempre a pensar nos estragos que a noite lhe iria fazer. Aguentou sem um gemido, rezando a Deus para que "aquilo" não demorasse muito tempo.

Empranhou e deu à luz sete vezes, que o seu António era homem afoito. Chorou em altos prantos a morte de dois filhos recém-nascidos. Foi a única vez que a ouviram lastimar a sua má sorte. No dia seguinte aos enterros amanhou uma terra inteira que a vida continua e não se compadece com a dor de ninguém. Passou fome quando o rio galgou as margem e lhe afogou as culturas da terra que a tanto custo conseguira comprar. Pediu caldo às vizinhas para os filhos e recebeu envergonhada o dinheiro de um peditório da missa que o Sr. Padre Góis fizera em seu nome. Em segredo, que o seu António não queria esmolas de ninguém, mas não dispensava o mata-bicho logo de manhã na loja da Ti Almerinda. Para dar forças, dizia ele.

Viu partir um filho para o Ultramar e de lá regressar amargo e de mal com a vida. Viu partir outro para as Américas e por lá ficar. As três raparigas foram também à sua vida: umas melhores, outra pior. Enfim, sempre fora um pouco cabeça no ar. A mãe bem lhe dera bons conselhos, mas quê o diabo está sempre atrás da porta.

Calou os maus tratos do seu homem, pois uma mulher quando casa é para sempre. Aguentou as bebedeiras e a loiça partida e o jantar espalhado quantas vezes pela horta. Aconchegou o estômago vazio nos lençóis puídos e sonhou que era outra vez menina de servir na casa dos senhores doutores. Sonhou com o metro de meio linho que recebia sempre pelos anos para o seu enxoval. E com os belhoses de abóbora pelo Natal.

Acordou um dia de muito frio e foi esquentar o café e torrar o pão. Estranhou o seu António não se levantar e foi dar com ele mais frio do que o dia na cama de ambos. Lavou-o, vestiu-o e chamou o Chico da agência funerária. As vizinhas telefonaram aos filhos. Eles e elas vieram, beijaram a mãe, olharam o pai com desinteresse, acompanharam o enterro. E partiram. Só o Zé ficou: queria levá-la para as Américas. Credo Cruz Canhoto! ! ! Pr’ás Américas nesta idade! ...Nem pensar! Deixar a sua casinha, as suas terras, as suas coisas e partir para um país lá tão longe onde as pessoas falam de uma maneira que ela não entende!...Não, nem pensar. Queria morrer ali onde sempre tinha vivido, onde o padeiro lhe levava o pão a casa, onde a Ti Almerinda lhe fiava o mês, onde as vizinhas a socorriam numa aflição.

Nunca se dera em casa dos filhos: muitos banhos que lhe davam cabo da pele, muita roupa para vestir e despir (sem necessidade nenhuma, que ela nem cheirava mal, nem nada!...), muita ferramenta à mesa. Gostava do seu canto, do seu borralho e da sua panela de ferro. Gostava de ir à missa ao Domingo e de assar uma galinha pela Festa de Nossa Senhora da Encarnação. Gostava de assistir às fogaças e de provar um copo de água-pé pelo São Martinho.

Um dia a Senhora Doutora veio ver a Celestina ali ao lado, acamada há que tempos. Coitada ! Deu de caras com ela à saída e perguntou-lhe pela saúde. «Vai-se andando. De vez em quando uma dor por baixo da barriga.» «Passe lá pelo posto médico amanhã para eu ver isso.» Lá foi, mais para não fazer desfeita à Senhora Doutora, do que pelas dores de barriga. Foi consultada, a Senhora Doutora torceu o nariz e mandou-lhe fazer umas análises. Um. dia recebeu o recado para ir ao posto médico. Foi aflita, pois para mandá-la chamar assim, coisa boa não era. A Senhora Doutora tinha recebido o resultado das análises e havia um problemazito. Era melhor ela ser vista por um doutor das senhoras. Ela tinha qualquer coisa no útero e essa não era a especialidade dela.

– Um doutor das senhoras? Daqueles que mandam tirar a roupa? A Senhora Doutora devia estar a brincar! ...

– Ó Senhora Umbelina, posso arranjar - lhe uma médica, não precisa ser um médico.

– Ah, mesmo assim!...nesta vida só a parteira Aurora a tinha visto como Deus a deitou ao mundo. Nem o seu António para lhe fazer os filhos!... Só às escuras, como agrada a Deus.

– Mas a senhora precisa ser vista, precisa de se tratar. O Senhora Doutora, eu só sinto umas dorzitas de vez em quando...

– Por isso mesmo, ainda vai a tempo de se tratar.

A Ti Umbelina não regateou mais para não faltar ao respeito à Senhora Doutora. Mas foi para casa de credencial na mão e decisão firme de jamais abrir as pernas para quem quer que fosse. Ela era uma mulher séria!!! Calou- se bem calada e evitou daí para diante encontrar-se com a Senhora Doutora. Por respeito. Nunca mais foi ao posto médico e morreu aos 86 anos de idade na mesma cama do seu António no dia da Ascenção de Nossa Senhora ao Céu.

Conto incluído no livro Alfabeto no feminino, Mar da Palavra, 2005

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