Fez ontem 5 anos que foi publicado o meu primeiro livro Alfabeto no feminino. O editor escolheu precisamente este dia como forma de assinalar a data, dada a temática do livro. O facto gerou grande controvérsia: Porquê assinalar o dia da mulher, se não há um dia dos homens. Uma das convidadas do painel pensou, inclusive, em não estar presente. Polémicas à parte, considero importante este dia como um dia de luta pela igualdade de oportunidades e de denúncia pelas inúmeras situações de injustiças às quais as mulheres estão ainda sujeitas. Todos os dias são de luta: neste consegue-se captar, com maior intensidade, as luzes dos holofotes.
Definição de mulher: aquele ser que resiste ainda e sempre à adversidade.
Deixo-vos um conto de quem não o conseguiu fazer. Para pensar....
ELISA
Olhou uma vez mais para as águas escuras e um arrepio sacudiu-lhe o corpo todo. No estômago as borboletas agitavam as asas desenfreadamente, arremessando-se com violência contra as suas paredes. As mãos crispadas agarravam as grades da ponte e estavam geladas. A boca estava seca e áspera como se tivesse comido um diospiro verde. A garganta doía à medida que o nó a estrangulava. As pupilas estavam húmidas, mas as lágrimas não escorriam. Só caíam para dentro. As veias da testa latejavam descompassadamente. Tudo nela era um frenesim que lhe descontrolava a respiração. Arfava como um galgo após uma corrida, confuso com o desaparecimento do coelho. Sentia-se perdida, desamparada e num beco sem saída.
Por uns segundos arrepiou caminho. Se calhar ainda havia esperança, mesmo que fosse só uma réstia, lá no fundo do túnel. Se calhar ainda era tempo de tentar mais uma vez. Reviu toda a sua vida num flash e de repente na calada da noite ouviu-se um «o tanas» e um forte baque nas águas do rio. Depois só o silêncio. E a escuridão de um céu sem estrelas.
Carla, uma amiga
«A Elisa andava deprimida, só agora percebo o quanto. Quem me dera que ela tivesse falado comigo, confiado em mim, desabafado o que lhe ia na alma. Eu não posso crer que ela tenha mesmo feito isto!...Noutro dia tinha-me dito que não tinha medo da morte: tinha muito mais medo da vida. Eu achei estranho, mas nunca pensei que ela chegasse a este ponto. Não, não sei porquê. Ou melhor, desconfio. O casamento dela não ia muito bem: ela sentia-se muito sozinha e desprezada. Andava muito triste, mas quando conversava connosco depressa se animava e estava sempre a contar anedotas. Era ela quem acabava por nos animar a nós. A Elisa era uma óptima amiga, sempre preocupada com os outros. No entanto era muito fechada: nunca ninguém sabia a fundo o que se passava com ela. De vez em quando deixava escapar alguma coisa, mas nunca aprofundava a sua vida particular.»
João, um colega
«Isto é um grande choque. A Elisa era uma mulher com uma energia invejável. Ela trabalhava, andava a tirar um mestrado, ia ver a mãe ao lar da terceira idade todos os dias, estava metida em mil e um projectos. Ela era uma força viva da natureza. Não consigo compreender o seu acto. Apanhou toda a gente de surpresa.»
Emília, uma vizinha
« Eu não a conhecia assim muito bem. Ela só veio morar para aqui há alguns anos. Mas eu achava-a uma pessoa simpática: cumprimentava as pessoas, passeava os cães, andava sempre no jardim de volta das flores. O marido via-se pouco, mas ela, quando estava bom tempo, andava sempre no jardim. Via-a às vezes a passear com a filha: via-se que gostava muito dela. Chamava-lhe ‘a minha princesa’.»
O Sr. Manel, da padaria
«A Senhora Elisa era uma pessoa muito educada. Vinha cá comprar pão muitas vezes. Muito discreta, sempre bem vestida. Não gostava de pinturas. Tomava sempre um café e levava um chocolate para a miúda. Acho que tinha uma filha de três anos. Nunca ficou a dever nada. Antes queria que eu lhe ficasse a dever quando não tinha trocos. Da última vez achei-a um bocadinho abatida.»
Rita, a irmã mais nova
«A Elisa trabalhava demais. Ela quase não tinha vida social. Nunca saía para lado nenhum: ou estava a trabalhar ou a tomar conta da filha. O mal dela era ser tão responsável, por isso é que nós não nos dávamos muito bem. A minha irmã não se divertia. E depois meteu-se com a casa e o dinheiro era sempre pouco ao fim do mês. Também acho que o meu cunhado dava umas voltas por fora.»
O Sr. Barreto, o gerente do banco
«A senhora Elisa era uma senhora como poucas. Era ela quem movimentava as contas e tratava das papeladas todas. Nunca vi o marido. Ela é que veio pedir o empréstimo para o carro, depois para a casa. Vinha requisitar os cheques, depositar o ordenado, levantar os cartões. Achei uma coisa estranha da última vez. Veio consultar-me sobre a possibilidade de reformular o empréstimo, mas não havia nada a fazer. Já tinha o prazo mais dilatado possível e já não tinha direito a juro bonificado. Depois levantou dinheiro com um cheque, pois disse que o marido é que andava com os cartões todos.»
A Dona Bina, a empregada
« A Dona Elisa era uma boa patroa. Pagava sempre ao fim do mês, dava-me uma prenda pelos anos, Páscoa e Natal. Quando eu precisava de faltar, nunca se queixava. Um dia estraguei-Ihe o micro-ondas e ela nem me descontou do ordenado. Disse que azares destes acontecem a toda a gente. O marido era muito esquisito: a roupa dele era toda cheia de etiquetas. Parecia um manequim. Não sei o que ele faz, mas a senhora é que tinha um curso e parecia empregada dele. Coitadinha!...»
A Senhora Augusta, a educadora da filha
«A Senhora Elisa era uma mãe atenta. Tinha uma boa relação com a filha. A Inês era uma miúda alegre, inteligente, bem falante e equilibrada. Fala muito da mãe, coitada. Não sei como é que uma mãe pode fazer uma coisa destas à filha! Não pensar nela. O pai vem agora cá mais vezes.»
A médica de família
« A Elisa não tinha uma vida fácil. Veio cá há um mês queixar-se que andava muito cansada e se eu lhe receitava uns comprimidos para dormir. Tinha a tensão baixa, receitei-lhe uns anseolíticos :uma caixa de Xanax. Mandei-lhe fazer umas análises mas ela nunca mais cá veio. Não sei os resultados. Achei-a preocupada com alguma coisa que não me disse e até foi um bocado seca quando lhe sugeri que fizesse uma dieta, pois estava com uns quilitos a mais.»
O Pedro, o irmão mais velho
« A minha irmã Elisa nunca foi de muitas falas. Sempre foi uma menina bem comportada, ao contrário da Rita e de mim. Nunca chumbou, nunca faltava às aulas, só namorou com um rapaz, casou com ele. Não sei por que é que ela tinha problemas. Quer dizer, problemas todos temos, mas problemas capazes de levá-la ao desespero.. Não lhe ouvi uma discussão com o marido, nunca teve uma briga comigo. Era uma pessoa sossegada e parecia viver contente. Gostava da filha, da profissão, gostava de estudar, da casa,... Era incapaz de matar um bicho, fazia reciclagem de tudo, detestava dar nas vistas. Nunca hei-de perceber por que é que ela se matou. Deixou-nos a todos de repente, sem uma despedida sequer. Nada.»
A Sra Maria do Céu, uma tia de idade
«A Elisa desde que foi viver para longe nunca mais foi a mesma. Via-a poucas vezes desde o funeral do pai. Depois a mãe com aquele problema, foi para o lar. Há muita gente que lhe levou a mal. Eu não. Hoje em dia a vida é sempre a correr e a minha sobrinha não podia ficar em casa a tomar conta da mãe. Ela precisava trabalhar e afinal de contas pôs a mãe num lar lá perto de casa. Pelo que dizem ia lá vê-la todos os dias. Eram muito amigas, quando a minha irmã ainda não tinha perdido o juízo.»
Diogo, o marido
«A Elisa nunca estava contente. Lamentava-se sobre tudo: da falta de dinheiro, de eu nunca estar em casa, de ninguém lhe ligar nenhuma. Não percebia que se eu queria subir na carreira tinha que mostrar trabalho, que fazer serão. Depois dizia que eu não ligava nenhuma à Inês. Não é verdade! Eu não tenho é paciência, nem jeito para brincadeiras de mulheres. A situação na casa tornou-se complicada e ela não queria de maneira nenhuma sair daqui. Depois meteu-se-lhe na cabeça que eu tinha uma amante, só porque ficava muitas noites a trabalhar com ela. Acho que tinha mais complexos por a minha colega ser mais bonita do que ela. Também, a Elisa desleixou-se muito ultimamente. Só queria dormir. Até acho que nem gostava mais de sexo. Andava sempre sem maquilhagem e o corte de cabelo não a favorecia nada. Eu disse-lhe. Depois meteu-se no mestrado e andava sempre cansada e stressada. Passava os fins-de-semana a trabalhar e não percebia que se eu me farto de trabalhar toda a semana, ao Sábado e ao Domingo preciso de me divertir com os meus amigos. Eu nunca a proibi de fazer o mesmo. Ela agarrava-se muito à filha. Podia-a deixar mais vezes em casa da minha mãe, mas não. Não sei por que é que se matou. Tinha uma vida como toda a gente, mas é mesmo típico dela: fugir aos problemas. Já a mãe fez a mesma coisa. Nunca lhe hei-de perdoar o que fez à filha. A Inês merecia uma mãe melhor.»
Ana Paula Mabrouk
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