segunda-feira, 15 de março de 2010

No Dia Mundial do Consumidor

Se tiverem mesmo que consumir, consumam livros!


ZULMIRA
E depois há este sentimento de voltar a casa. Velhos hábitos, velhos quadros, velhos cheiros. A sensação inconfundível de reconhecer as coisas, as pessoas, os lugares. Chegar, respirar e sentar no sofá cansado saboreando o momento do regresso. Sempre acreditei que as casas possuem o seu ambiente próprio, independentemente de quem as habita. Chão, paredes, tecto, camas e mesas são apenas o que são e não têm as conotações que lhe atribuem. Nenhuma casa possui bons ou maus augúrios: uma casa existe simplesmente.

A minha casa era assim. Não tinha gritos pendurados nas paredes, nem ódios a escorrer dos beirais, nem mesmo ressentimento no chiar da velha cama. A minha casa tinha o mesmo cheiro e aspecto de sempre, e deles eu sentia saudades. Por eles estava contente por regressar. A maior felicidade que tivera era encontrá-la vazia, sem gente a atrapalhar. Pudera então usufruí-la plenamente, apenas com o silêncio por companheiro. Matámos as saudades e pusemos a conversa em dia. Murmurámos segredos ao ouvido e rimos alegremente ao relembrar velhas histórias. Como era bom estar de volta! ...

Tudo permanecia exactamente igual e essa certeza enchia-me de confiança e de determinação. Precisava dessa permanência, dessa base de estabilidade para dar o salto. Estava decidida a ser feliz e ia ser. Perdera já demasiado tempo e inventara demasiadas desculpas. Chegara finalmente o momento e com uma energia que advém das longas reflexões tinha toda a intenção de agarra-lo com ambas as mãos e tirar partido da oportunidade. E não havia que enganar: essa oportunidade estava mesmo ali à mão. Sorri ao imaginar a cara de todos quando soubessem a notícia: ia publicar um livro.

O meu sorriso alargou-se, comunicou-se aos olhos, ao nariz, à testa. Sentia-me muito calma. Munida com a coragem de uma convicção anos e anos a fio recalcada, gozava antecipadamente o meu momento de glória. Sem me aperceber, há muito que havia rebentado as correntes: nem medo, nem desespero, nem covardia, nem ódio, nem pena. Tudo pertencia ao passado. Nem mesmo amor, se algum restara. Apenas um pensamento: salva-te enquanto podes. E ainda era tempo. Tempo de recomeçar a viver, tempo de tirar partido de mim. E por que não? Já todos o haviam feito. A única diferença era que eu pretendia usar-me em proveito próprio. Afinal de contas é-se sempre sozinho. No meio das multidões ou na intimidade do nosso quarto é-se sempre sozinha. Por isso vou apostar em mim. Sei os trunfos que tenho e as cartas que quero jogar. E o mais importante é que ainda acredito em mim, sabendo que mais ninguém o faz. É esse o meu segredo. Sei que há amores felizes, mas mesmo esses requerem incógnitas e dúvidas e lágrimas. Eu só requero algum espaço e liberdade. Basta uma página em branco à espera de uma história. E dias de chuva e noites silenciosas e cúmplices. E recordações nebulosas. E sonhos. Muitos sonhos.

Um livro é um jogo de inventar e um jogo que se inventa. Ir desvendando a pouco e pouco os seus segredos, travar conhecimento com os seus eus, pensar as palavras. Ousar transpor as barreiras do real, assomar as do impossível. Doar-se por inteiro a um mundo que passa a ser o nosso, a um mundo que passamos a ser nós mesmos. Fantasia ou realidade? Que importa?! A serpente de uma morde a cauda da outra numa história que se eterniza, numa história interminável.

Jogo às escondidas. Vivo por entrepostas pessoas e não sei se alguém me sonha ou se sou eu própria que em sonhos me escrevo. O mistério esconde-se nas entrelinhas de cada verso, nos períodos de cada frase. Pistas e presságios vão construindo a ilusão de que somos nós o herói do que lemos na concretização do sonho há muito esquecido no fundo de alguma velha gaveta. Gaveta de desvarios, de mundos empoeirados, amarelecidos pela espera. E depois a cumplicidade marginal de uma nova descoberta. A aventura de ser louca e poeta e quem sabe mulher ao mesmo tempo. Ou mulher sobretudo ou sobretudo mulher.

Conto nº 26 e último do livro  Alfabeto no feminino.
 
P.S.: Não os tenho publicado por ordem, por isso ainda faltam uns quantos....

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