sexta-feira, 19 de março de 2010

Florbela ou um conto rural bem humorado

FLORBELA


«Quem tinha umas mãos de fada erá minha Florbela!» Esta era uma das suas frases preferidas. Segundo ela a sua Florbela era um modelo de virtudes. Não havia ninguém que lhe chegasse aos calcanhares. «Num era cum'essas badanecas d'oje que não sabem fazer nada. As cachopas d'oje querem é andar de cabeça no ar c'os rapazes. Uns badamerdas que nem trabalhar querem. Antigamente sim, isso é qu' eram homes. Homes ali d' enxada na mão, que sabiam fazer tudo, cumó meu falecido, que Deus o tenha. Roçaba ali uma carrada de mato enquanto o Diabo esfregaba um olho. Hoje ninguém quer trabalhar. Encostam-se ali no café a jogar a sueca e a beber cerbêja o dia interinho. Ah, mas a minha Florbela não bai na cantiga. É o bais!... O rapaz dela há-de ser gente boa. Gente boa e trabalhadeira. Não há-de ser cum' esses quinda por cima bibem à custa das mulheres.É só pôr os olhos no menino Joãozinho e na menina Zabelinha!...Até corta o coração da gente ber assim uma menina noba no 'stado qu'ela 'stá!...E atão sem precisão! Aquele menino Joãozinho é um judéu disfarçado. Inté capaz de dizer que Deus não é Deus! ! ! Inda onte telefonou à menina a pedir mais dinheiro. Mais dinheiro, a bezinha beja bem!... Só s'ela o roibar! Cum duas crianças piquenas pra gobernar e só d'ordenado dela...Sim, porqu'aquela não bê o cheiro do dinheiro dele há um ror de tempo. Diz ele qu'o dinheiro que lhe roibaram no assalto- a gente sabe bem qu' assalto, era lá do serviço e qu' ele agora tem que o pôr do bolso dele. Quant'a mim, é mais do bolso dela. Lérias, é o que é. Ah mas a minha Florbela não bai nessas cantigas. Não qu'eu 'stou d'olho. Não bou deixar um fedelho qualquer meter as mãos na minha menina. Há-de ter milhor sorte se Deus quiser e eu não morrer antes. »

Mãe coruja, continuou a sê-lo mesmo depois da cria ter batido asas e voado. A sua Florbela não era mais do que uma rapariguita enfezada que andava sempre descalça e se assoava à manga descosida da camisola. Incitada constantemente pela mãe a compor-se, lá escovava os cabelos oleosos de vez em quando e tirava a ramela dos olhos perpetuamente ensonados. Tirara a quarta classe com dificuldade, deixando-se depois ficar em casa.

Quando se faziam as grandes limpezas da Primavera em nossa casa, a ti Maria trazia-a sempre atrelada. «Sempre dá uma ajudazita» - dizia em jeito de explicação. E que grande ajuda! Encostava-se às paredes de olhos parados e mãos caídas. «Ó rapariga mexe-me esses ossos", ralhava-lhe a mãe. "Passa-me aí o esfregão, arregaça-me essas mangas!» Mas de nada serviam os ralhetes da mãe.

Um dia começou a rondar a casa um rapaz mal encarado, permanentemente despenteado, guiando uma motorizada cansada que fazia uma barulheira infernal. A mãe acautelou-a :« Ó rapariga, s'aquele biralatas pensa qu'eu criei uma filha pró bico dele, 'stá muito enganadinho. Pode já indo tirando o cabalo da chuva..» A sua Florbela parecia não ter ouvido, pois todos os dias à tardinha lá estava ela à janela esperando o seu motoqueiro andante.

Um dia ao passar por ela notei qualquer coisa de diferente. O cabelo continuava oleoso, o pé descalço, os olhos com ramela, mas havia alguma coisa. ..E de repente fez- se luz: a Florbela tinha engordado! Mas seria o que eu estava a pensar?

Um dia entra a ti Maria disparada pela casa adentro, de mãos à cabeça e «ai bezinha » na boca.

– Ai bezinha, que desgraça a minha!...", gritava sem parar.

– Que foi mulher! , perguntou a minha mãe assustada.

– Ai ó bezinha o qu 'é qu 'há-de ser de mim! ? ‘ Stou perdida , e arrepelava os cabelos.

– Aconteceu alguma desgraça?, tornou a minha mãe de olhos aflitos.

– Ai a minha Florbela!...Antes tivesse morrido.., gemia.

– Desembuche, mulher. Pelo amor de Deus!

– ‘stou sem pinga de sangue. Benho agorinha mesmo do posto médeco saber os resultados dumas análeses qu ' a minha Florbela fez, a bezinha sabe, por causa daqueles gómitos qu'ela tem tido, e aqueles desmaios qu'a a têm posto amarelinha de há uns tempos a esta parte, e bai o médeco e não me diz qu'ela 'stá prenha! ! ! Ai ó mulher o qu'é que há-de ser da minha bida!...

– A sua Florbela! ! !

– A minha Florbela.! A minha menina!...Eu tamém lhe disse qu'ele 'stava doido da moleirinha, qu'a minha Florbala não era dessas, qu'as análeses 'stavam trocadas .

– E ele ?

– E ele, aquele mal educadão, disse-me nesta cara qu'a terra há-de comer qu'era tão certo a minha Florbela 'star grábeda cumo ele não 'star!... E que me fosse preparando que daqui a 6 meses já habia de ser abó.

– E quem é o pai ?

– Ai é que 'stá. A minha Florbela não quer dizer. Eu só sei qu'ela não era menina que tibesse pr'aí namoricos cum ninguém. Só pode ser aquele filho dum cão que não paraba de rondar a minha casa. A minha menina desonrada, mulher. Ai de mim!...

- E a ti Maria nunca desconfiou de nada?

– De nada. E nem houbera. A minha Florbela andaba sempre mais eu. Pra onde eu ia, lebaba-a tamém. Só não ia pró o rio porque é muito fraquinha dos pulmões. Mas o meu Ambrósio ficaba sempre cum ela. Gosta muito dela o meu Ambrósio. Gosta dela cuma filha. Eu até lhe dizia pra ele não a 'stragar cum mimos. E agora acontece-lhe uma coisa destas! Nem 'stou em mim!

–Ó filha, vai buscar um copo com água para a Ti Maria. Atão como é que ela fez uma coisa daquelas?

– Sei lá mulher, sei lá! O meu Ambrósio diz que só se foi algum dia qu'ele 'staba dormir a sesta. Qu'ele nem é home de dormir.a sesta, mas uma bez por outra, a bezinha compreende, um home não é de ferro...Brigada ò miga

– Beba, beba que lhe faz bem.

– A bezinha habia de ber o meu Ambrósio quando soube. Ficou branco cumo a cal da parede. Até perdeu a fala, coitadinho. Ele gostaba muito da minha Florbela, já se sabe. E tamém não é pra menos. O meu Ambrósio é um santo. Ficou de tal maneira atordoado que nem bateu nela, nem nada! Só ralhou um cochichito até ela começar a chorar. Ah, mas ele diz quo motoqueiro não lhe 'scapa. Ninguém sabe de quem aquele desgraçado é filho, ah mas o meu Ambrósio trata-lhe da saúde. S’ele pensa qu ' é só andar aí a fazer filhos às filhas dos outros, pode tirar o cabalinho da chuva.

Meu dito, meu feito. O que o senhor Ambrósio disse ou fez, ninguém sabe. O que se sabe é que o rapaz embora afirmasse sempre que não tinha nada a ver com o filho da Florbela, acabou mesmo por casar com ela. Ela, de barriga inchada e cara envergonhada, enfiou um vestido curto e foi ao altar prometer aceitar da mão de Deus os filhos, blá, blá, blá. ..

Seis meses mais tarde nascia uma menina a quem foi posto o nome de Florbela, como a mãe.

Ainda hoje o Tó da motorizada, continua a afirmar não ser o pai da criança, e as más línguas comentam que não haja dúvida, atão não é que a pequena Florbela é mesmo a cara chapada do senhor Ambrósio!...

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