Caros amigos e leitores,
deixo-vos o texto que escrevi para a apresentação do livro Debaixo
de algum céu de Nuno Camarneiro, em Avis, no âmbito d'Escritos
& Escritores 2013
Debaixo de Algum Céu é
um livro de aparente fácil leitura. Tem uma escrita escorreita, sem grandes
floreados linguísticos, sem recurso a palavras muito eruditas ou a ideias que
requerem grandes conhecimentos literários ou pensamentos metafísicos
intrincados. Lê-se ao correr da palavra e não fica se enredado nas malhas de
construções frásicas e ideológicas que nos assaltam ao virar de cada parágrafo.
Contudo, esta facilidade é só aparente. A verdadeira complexidade encontra-se
no desenho das personagens e na sua humanidade, plena de contradições internas
e de escolhas que se questionam mais tarde. É no plano do conhecimento humano e
na construção das personagens que reside, quanto a mim, a atração deste livro.
Não há heróis, nem vilões, nem mártires. Há apenas pessoas normais que poderiam
representar cada um de nós e a nossa demanda pela felicidade, o que quer que
essa ideia abstrata consubstancie.
Este
livro inicia-se com um preâmbulo do narrador, que desde logo se assume como
omnisciente e observador atento da história. Nele, o narrador contextualiza a
trama narrativa, apresentando o local
– um prédio à beira mar, numa cidade de província com pouco mais de 2.000
habitantes, entre eles pescadores, gente pobre, famílias fugidas das grandes
cidades e “alguns homens estranhos”; o
tempo – final do ano, sete dias de um ano e o primeiro dia do ano
seguinte. É também no preâmbulo que tomamos consciência da linha orientadora da
história, aquilo a que os alemães denominam de “Rotfaden” ou fio condutor.
Trata-se de uma história, de “portas adentro”, emoldurado por um “Inverno
pesado e frio”, durante o qual as personagens procuram calor sob várias formas:
nas caldeiras, na lareira, nos corpos dos outros e até nos alimentos. Este
romance, a que me atrevo a chamar psicológico, vive da economia de tempo –
pouco se sabe do passado ou do futuro – e da economia do espaço – a ação
concentra-se verdadeiramente no interior do prédio. O leitor só tem acesso ao
exterior através de breves lampejos e pela mão dos homens. São eles que
usufruem de maior liberdade de movimentos, enquanto as mulheres são
apresentadas como seres enclausurados pelas paredes físicas e pelas suas
escolhas, que as limitam enquanto seres humanos.
A
história é-nos apresentada dia a dia, alternadamente pela voz do narrador e
pela voz de uma das personagens, numa dialética que envolve o leitor na trama
como mais uma personagem silenciosa, testemunha emotiva mas impotente face ao
desenrolar dos acontecimentos. Testemunha emotiva, porque esta é uma história
de emoções – medos, raivas, frustrações, anseios, silêncios, abandonos,
encontros e desencontros. Não nos deparamos com meros estereótipos mas com
personagens humanizadas que se dividem por apartamentos e que se cruzam nas
escadas e na porta do prédio, desconhecedoras das vidas uns dos outros, até que
um acaso do destino – uma tempestade que causa um corte de luz – obriga a que
se entrecruzem e sejam “mais vizinhos”. Como proclama o autor “há semanas grandes
como anos e horas infinitas” e esta é a semana das grandes decisões que vão
desde reconciliações, a cortes irrevogáveis, passando por reencontros
inusitados.
Tão
importante como tudo aquilo que se diz, é aquilo que se cala e que às vezes se
pressente e outras vezes não. “ Quando alguém conta um dia ou uma vida está a
calar quase tudo, as vidas são imensas e não se podem contar só por palavras”,
afirma Nuno Camarneiro.
Vamos
então abrir as portas dos apartamentos e espreitar as vidas dos moradores, mas
só um pouco para não quebrar a expetativa que se impõe a quem irá ler o livro
no futuro.
No
rés-do-chão esquerdo vive David, um homem solitário e até um pouco agarofóbico.
Tem os olhos permanentemente assentes no monitor do computador e as mãos no
teclado. “Vive de inventar gente, pagam-lhe para desenhar pessoas que ainda não
existem” para uma empresa chamada PORVIR (nome manifestamente adequado e
irónico). O projeto desta empresa é futurista e está relacionado com a
inteligência artificial e com uma base de dados de pessoas virtuais que possam
ser vendidas ou alugadas daqui a alguns anos.
No
rés-do-chão direito habita Marco Moço, um velho lobo-do-mar que se passeia
diariamente pela praia em busca daquilo que o mar devolve às areias. Marco
recolhe objetos que para alguns seriam considerados apenas lixo e com esses
objetos constrói uma máquina na cave do prédio. O seu objetivo é tentar recriar
uma espécie de “orquestra” que reproduza
os sons do mar.
No
primeiro esquerdo vive uma família composta por Adriano, Constança e uma bebé
chamada Diana. Ele é um homem irritado e tenso, sempre atrasado do trabalho.
Ela é uma mulher que espera, cansada, carente e possessiva em relação à sua
bebé, como uma jovem leoa.
No
primeiro direito vive Margarida, uma viúva com um gato, que vive de memórias do
tempo em que era casada com um engenheiro holandês que desenhava barcos.
Todo
o segundo andar é ocupado por uma única família. Bernardino é subgerente de um
banco aguardando ansiosamente a promoção que nunca chega. Manuela é professora
de Inglês, resignada com a vida que escolheu. Joana é uma típica adolescente
rebelde em busca de novas sensações. Frederico é um miúdo de oito anos, calado,
introvertido, perturbado e que gosta de desenhar. A mãe vaticina que ele um dia
irá “ser grande como muito mar”.
No
3º esquerdo vive o Padre Daniel, um jovem padre que atravessa uma crise de fé.
Acaba por perder a vida de alguém que lhe era próximo mas consegue salvar outra
vida e no processo salva-se a si próprio.
No
3º direito não vive ninguém no início da história mas assiste ao regresso de
Beatriz, uma mulher atormentada pelo passado que não consegue esquecer e
superar.
Todas
estas personagens partilham o mesmo espaço – o prédio – mas estão isoladas como
livros arrumados em estantes, alinhados mas que não se misturam. “ …afinal o
inferno é frio e sem companhia”, desabafa David.
Nos
oito dias durante os quais se desenrola a trama narrativa, as personagens
mostram-se no seu íntimo: frágeis, seres em permanente demanda, divididas entre
a vida que levam e os desejos recalcados daquilo que poderiam ter sido. “Somos
tolos e sentimentais, temos arcas cheias de mágoas que não esquecemos e que
abrimos a todo o momento para ver se ainda nos doem, e doem sempre” – diz-nos o
narrador a certa altura.
O livro
termina no primeiro dia de um novo ano com uma tragédia no prédio que reúne
todos os moradores. Este acontecimento inesperado sacode o marasmo e leva as
personagens a tomar decisões que irão afetar definitivamente as suas vidas
futuras. Uns salvam-se, outros não, outros há ainda que salvam outras vidas.
Seja de que forma for, todos os moradores foram obrigados a olhar para dentro
de si e a enfrentar os seus monstros e medos e a decidir o rumo a dar às suas
vidas.
Remato
com uma frase do narrador, em jeito de moral da história:
“
Tristezas não pagam dívidas e alegrias não contam histórias.”
Ana
Paula Mabrouk
19 de outubro 2013