deixo-vos aqui a entrevista dada por Filinto Elísio à revista Livros & Leituras.
Livros & Leituras – Como é que a escrita entrou na sua vida e que papel ocupa?
Filinto ElísIo Silva – A minha vida nasceu com a escrita. O meu irmão António, que é também escritor, diz com razão que o meu pai, pelo dom de narrador, é um escritor sem livro. Depois, a minha mãe era professora primária, trazendo para mim, desde o início, o ludismo das letras. Uma espécie de Xerazade em forma de mãe. Ainda, na minha primeira infância, eu apresentava o teatrinho de crianças em que o meu papel era declamar (…) Irene preta/Irene boa/Irene sempre de bom humor/Imagino Irene entrando no céu (…), de Manuel Bandeira e, mais tarde, aprendera a dizer (…) Luísa sobe/sobe a calçada/sobe e não pode/que vai cansada (…), de António Gedeão.
L&L – Escreve por inspiração ou objeto de um trabalho apurado e consciente?
FES – Não sei se há uma fórmula sobre o fazer literário, mormente sobre o fazer poético. Paulo Leminski diz (…) Escrevo porque amanhece/ E as estrelas lá no céu/ Lembram letras no papel (…) E eu como me inscrevo nessa escrita? Antes de mais, mesmo em prosa, a poética invade todos os meus textos. Sou um pouco aquela premissa de Ferreira Gullar em como a poesia é movida por espanto, alguma coisa que você não controla. A primeira faísca poética é esfíngica, seguida de um torpor de voo, do jeito de ser livre, bem à Manoel de Barros, moda ave. Entretanto, passado esse surpreender com as coisas o texto poético entra em fase de aprimoramento, aprendiz que sou de “Alguns Toureiros”, de João Cabral e Melo Neto, já o ditame de não derramar palavras. A poesia veste-se, de sintaxe correcta, de colares semânticos e de perfumes metafóricos, a tal “roupa de ver Deus”.
L&L – No seu entender, há uma verdadeira comunidade de escritores lusófonos, unidos em torno da Língua Portuguesa, sem fronteiras de nacionalidade?
FES – Aceito que sejamos uma Pátria Lato Senso, aquela vaticinada por Fernando Pessoa, sob o mando diáfano da Língua Portuguesa, uma coisa plural e bem diversa, com pátrias estrito senso, com povos de outras línguas e linguajares em português e/ou nem isso, onde os escritores, em polifonias criativas fazem distúrbios no idioma, como se vê nos deliciosos discurso poéticos de Manoel de Barros, das narrativas de Guimarães Rosa e dos tropos imagéticos de Mia Couto. O multilinguismo, projectando identidades. Eduardo Lourenço dizia que «Quantas mais línguas falamos, mais pátrias temos». É um conceito de multiculturalidade profundamente actualizado do nosso mundo global. Aceitando esse pluriverso, somos, sim, uma comunidade. Instituída a igualdade, a liberdade e a fraternidade, esbatemos sim as fronteiras de nacionalidade. Assumidos o ethos de cada cultura e a ética individual de cada autor, podemos andar juntos como lusofonia.
L&L – De que forma pode a Literatura reforçar os laços no espaço da Lusofonia?
FES – Através de intercâmbios mais intensos. Os encontros de escritores são importantes. O diálogo dos escritores com o público, melhor dito com os públicos é imprescindível. Dentro desta língua, todos deveriam ter mais mobilidade, a começar pelos escritores.
L&L – Enquanto escritor(a), que dificuldades encontra, no que diz respeito à edição e divulgação do seu trabalho?
FES – Os escritores, quando se enveredam para a publicação, vivem a angústia editorial. Não é fácil pôr um livro cá fora, nem é fácil que o mercado livreiro o absorva. Será que o livro chega ao leitor? A que leitor chegará o livro? Em Cabo Verde, embora tenhamos atingido a taxa de alfabetização de 98,1%, a política do livro e da leitura é deficiente. Faltam editoras, livrarias, bibliotecas, círculos do livro, as feiras de livro, essas coisas. Enquanto escritor, ciente desta situação, tenho andado também por outros mercados, nomeadamente o português e o brasileiro, bem como no da diáspora cabo-verdiana. Mas as dificuldades são inerentes aos desafios, já que não há opção mais edificante do que ser escritor. O meu amigo e poeta Dimas Macedo diria que um escritor não é apenas um criador que se mantém alienado do processo social. Dele se espera que seja o Sal da Terra e que ajude a reflectir sobre o projecto da sociedade em que vive.
L&L – Que estratégias de incentivo à leitura gostaria de ver implementadas?
FES – As que consequentemente enquadrariam o livro no rol dos bens da primeira necessidade e a leitura como prioridade educativa. Incutir o hábito e o gosto pela leitura na tenra infância. Fomentar a literatura infantil e juvenil. O pensamento estruturado e o espírito crítico não se formam apartados do elemento livro. Gosto de repetir a frase do intelectual brasileiro José Castilho que diz ser a incapacidade de ler uma “doença terminal da cidadania”.
L&L – Acha que o uso das novas tecnologias desvaloriza os encontros com escritores e outras atividades presenciais, nomeadamente, o contacto com os leitores?
FES – Nada disso. Pode desconfigurar o Universo de Guttemberg e configurar novas texturas e formatos para o livro, mas sendo expressão do bíblico e iniciático Verbo, creio que o livro veio mesmo para ficar. Estamos em tempos de coexistência e de coabitação de várias soluções tecnológicas de leitura, sob a matriz da essencialidade do livro. O meu mais recente trabalho “Me_xendo no Baú. Vasculhando o U”, em parceria com o artista plástico luso-australiano Luís Geraldes, levanta a problemática das texturas do texto. A poética pode ser inscrita no livro, nas pinturas, em tatuagens corporais, em grafites dos murais, nas declamações em DVD, nas coreografias e a grafia dos poemas pode sofrer incisões de mudança potenciando a Poïesis (na raiz inalterável do grego ποίησις).
L&L – Tem preferência pelo livro em suporte de papel ou crê que os suportes digitais são o futuro?
FES – Os dispositivos vão acrescentando novas formas de ler, como nos apresentam agora o livro digital. Esta solução introduz a facilidade de armazenamento de textos e transporte num único suporte de centenas de livros. Ainda que eu seja um bibliófilo à moda antiga e me encante ver o livro nas estantes, também aceite inovações como as propostas pela Kindle, da Amazon, e pelo Reader, da Sony. Em verdade, eu não sou contra digitalizar os meus livros, facilitando assim a sua migração para o número cada vez mais crescente de leitores electrónicos. Ademais, há o paradoxo ecológico, já que essas novas tecnologias de leitura potenciam uma diminuição no corte de árvores.
L&L – Para os leitores que estiverem a pensar em ler um livro seu, pela primeira vez, qual aconselha e porquê?
FES – Não sei. O “Do Lado de Cá da Rosa”, iniciático, muito intimista, tacteante ainda da minha liberdade e da minha subjectividade enquanto artífice do meu próprio projecto existencial, leva a minha inocência primeva. Pode, só por isso, ter interesse. Se for leitor jovem, leia “O Inferno do Riso”, o meu terceiro livro, que versa os quatro elementos primordiais em verso livre. Se for leitor, assim arrojado cultor da poesia, “Li Cores & Ad Vinhos”, meu cabalístico sétimo livro, em que ouso levar o soneto para a literatura moderna, experimentando reformatar a ideia de um certo barroquismo. Uma coisa tântrica, com ilustrações do artista plástico Mito, em tributo à era do aquário. Mas a minha vontade é convidar os leitores a ficarem atentos aos próximos trabalhos.
L&L – Que projetos literários tem para o futuro?
FES – Tenho um livro, já pronto, com um editor brasileiro, que é “Diversa Prosa de Quase Verso”. Tenho mais dois outros “Caliban Driblando Prospero em Amazónia” e “Conchas de Noé & Arcas Ostras”. Ando também a burilar um projecto maior, com o título geral “Desandares por Lisboa”. Desoficinar a poesia sempre por novos caminhos. E depois, provavelmente um romance que não sai do meu espírito de há algum tempo. Nele penso contar a dimensão afectiva das narrativas de um novo Cabo Verde.