sexta-feira, 19 de abril de 2013

O teu olhar absoluto

Caros leitores e amigos,

hoje publico o último dos poemas premiados no III concurso Poesia na Biblioteca. Este poema granjeou a Menção Especial do Júri ao poema apurado extra-concurso, (dado não respeitar o Artº 8 do Regulamento no que toca ao tamanho) “LVI. O teu olhar absoluto/alba”, de Guilherme Rios.



LVI. (O teu olhar absoluto/alba)

A água continua quando acabas.
- João Negreiros

noutra idade e noutras ilhas ardendo
os veleiros sacodem os seus longos braços
de vento e estilhaços
nos teus ombros despidos

poderia então dizer-te
que te demoras nos meus ossos
como fruto sangrando ou rebentação de astros
e uma ave branca entraria na minha boca
estremecendo até à primeira luz
nesta sucessão exacta de silêncios

confessas no entanto estarmos a mais nas horas
ou que os dias abrem fendas no teu nome e no meu
e que nada mais resta senão morrer
em todas as casas onde nos tocámos

e quando falas – dizem-me –
és o equivalente preciso
de galáxias exalando a sua própria cinza
ou garças de sangue desfiando as suas asas
de fora para dentro

da nossa roupa restam vestígios
de aves de sal e de fogo
e o rio atravessa-nos
na ebulição contínua
das cidades imaginadas

lembro-me
pela manhã éramos duas ilhas
que a madrugada havia extinto
e guardavas por detrás do teu crepúsculo de mãos
o lume de quem aguarda um outro abraço
que não hesite em devorar as horas mortas

procurávamos no sono
algo que nos abrigasse das feras nocturnas
ou que nelas nos ancorasse de vez

nas ruas negras
as viúvas teciam as horas avessas
e atravessavam as clepsidras
carregando vasos de lírios adormecidos
e outras sombras

com o passar dos meses
decorámos a caligrafia exacta do medo

e hoje
no tempo depois do tempo
pergunto-me com que idade comecei a esquecer
a infância que não tive
e uma súbita urgência
de acender lumes no asfalto
alastra-se a todas as cidades do mundo

por detrás das pálpebras
cercadas pela escuridão e pelo orvalho
finjo-te narcótico sobre o gume afiado
do te amor-nebina e nada temo
excepto a hera indomável
dos teus passos estremecendo
na orla do dilúvio.

 

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