O ano está quase a acabar e com ele mais uma página miserável da minha vida. Perdi noites sem fim, perdi a vida social (a pouca que tinha, que já de si não era grande coisa). Perdi a auto-estima, o gosto pela vida na tarefa árdua de sobreviver a cada dia que passa. Perdi o marido, que regressa ciclicamente com as suas necessidades e angústias, mas que de mim apenas quer a segurança de um lar à sua espera. A única coisa que ganhei foi peso. Uns quilinhos a mais que não dá mais para disfarçar com roupas largas. Deixei de me pesar, de me olhar nua ao espelho e até de me masturbar. Tenho repulsa de mim mesma. Desgosto-me com o que vejo e para matar o desgosto como chocolates. (Come chocolates, pequena ) Chocolates e sanduíches e omeletes gigantescas. Bebo café com pouco açúcar .
Durmo e acordo e mal adormeço, acordo rabugenta e remelenta. Luto contra a vontade de desistir e de me prostrar na cama, não um, mas todos os dias que me restam. Acelero ao sono, à preguiça, ao frio, à entrada da auto-estrada. Corro manhã fora e sorrio e sou atenciosa e esclareço dúvidas que não são as minhas. (Essas não são passíveis de esclarecer. Ficam na gaveta das angústias existenciais. Recalcadas.) Engulo à pressa restos do jantar de ontem e faço planos e planificações. E tão fácil planificar a vida dos outros, às horas, aos minutos, aos segundos...
Folheio e leio; escrevo e rescrevo. Amarroto e deito fora. Começo de novo. E no final, satisfeita com o que faço, arrumo as folhas e os livros e cansada planeio o jantar. Descasco batatas, migo carne. Junto cebolas, cenouras e ervilhas. Azeite, água e sal. Ligo o fogão. Meto inversão de marcha e recolho o rebento que fala e canta e pergunta porquê. Lavo, visto e dou de comer. Brinco aos médicos, construo quintas, faço corridas de automóveis. Ao deitar leio uma história até os olhos deixarem cair persianas tenras.
Penso escrever mas o quente da cama e a ternura da mão pequena na minha mão são mais fortes. Rolo o corpo cansada e apago a luz do dia. Na escuridão invento histórias e dirijo personagens. Enredos complicados e inteligentes. Recebo palmadas nas costas e sessões de autógrafos. Sou a protagonista da minha vida e assino o meu primeiro nome. Sabe bem descansar depois.
Um choro sobressaltado chama-me à realidade da noite fria e canto canções de embalar, de menino ao colo e S. José ausente. Na sala a gambiarra acende e apaga cadenciadamente, reflectindo luzinhas de cores na parede do quarto. O menino adormeceu enfim. É noite na cama de grades e o ar sereno tudo faz esquecer e pensar que talvez valha a pena ser Natal todos os dias.
Não sei porquê duas lágrimas grossas desaguam rosto abaixo.
1ª conto do livro Alfabeto no feminino,Mar da Palavra, 2005
narrativa em discurso rápido, como rápidos passam os dias, de uma vida anulada por viver a vida dos outros (a sua apenas em sonhos ou na emoção de um berço adormecido). tantas assim...
ResponderEliminarCara Maria Manuel,
ResponderEliminar...e dormindo e acordando se passam os dias... e a vida.
Ana Paula