domingo, 21 de fevereiro de 2010

Ana

O ano está quase a acabar e com ele mais uma página miserável da minha vida. Perdi noites sem fim, perdi a vida social (a pouca que tinha, que já de si não era grande coisa). Perdi a auto-estima, o gosto pela vida na tarefa árdua de sobreviver a cada dia que passa. Perdi o marido, que regressa ciclicamente com as suas necessidades e angústias, mas que de mim apenas quer a segurança de um lar à sua espera. A única coisa que ganhei foi peso. Uns quilinhos a mais que não dá mais para disfarçar com roupas largas. Deixei de me pesar, de me olhar nua ao espelho e até de me masturbar. Tenho repulsa de mim mesma. Desgosto-me com o que vejo e para matar o desgosto como chocolates. (Come chocolates, pequena ) Chocolates e sanduíches e omeletes gigantescas. Bebo café com pouco açúcar .

Durmo e acordo e mal adormeço, acordo rabugenta e remelenta. Luto contra a vontade de desistir e de me prostrar na cama, não um, mas todos os dias que me restam. Acelero ao sono, à preguiça, ao frio, à entrada da auto-estrada. Corro manhã fora e sorrio e sou atenciosa e esclareço dúvidas que não são as minhas. (Essas não são passíveis de esclarecer. Ficam na gaveta das angústias existenciais. Recalcadas.) Engulo à pressa restos do jantar de ontem e faço planos e planificações. E tão fácil planificar a vida dos outros, às horas, aos minutos, aos segundos...

Folheio e leio; escrevo e rescrevo. Amarroto e deito fora. Começo de novo. E no final, satisfeita com o que faço, arrumo as folhas e os livros e cansada planeio o jantar. Descasco batatas, migo carne. Junto cebolas, cenouras e ervilhas. Azeite, água e sal. Ligo o fogão. Meto inversão de marcha e recolho o rebento que fala e canta e pergunta porquê. Lavo, visto e dou de comer. Brinco aos médicos, construo quintas, faço corridas de automóveis. Ao deitar leio uma história até os olhos deixarem cair persianas tenras.

Penso escrever mas o quente da cama e a ternura da mão pequena na minha mão são mais fortes. Rolo o corpo cansada e apago a luz do dia. Na escuridão invento histórias e dirijo personagens. Enredos complicados e inteligentes. Recebo palmadas nas costas e sessões de autógrafos. Sou a protagonista da minha vida e assino o meu primeiro nome. Sabe bem descansar depois.

Um choro sobressaltado chama-me à realidade da noite fria e canto canções de embalar, de menino ao colo e S. José ausente. Na sala a gambiarra acende e apaga cadenciadamente, reflectindo luzinhas de cores na parede do quarto. O menino adormeceu enfim. É noite na cama de grades e o ar sereno tudo faz esquecer e pensar que talvez valha a pena ser Natal todos os dias.

Não sei porquê duas lágrimas grossas desaguam rosto abaixo.

1ª conto do livro Alfabeto no feminino,Mar da Palavra, 2005


2 comentários:

  1. narrativa em discurso rápido, como rápidos passam os dias, de uma vida anulada por viver a vida dos outros (a sua apenas em sonhos ou na emoção de um berço adormecido). tantas assim...

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  2. Cara Maria Manuel,

    ...e dormindo e acordando se passam os dias... e a vida.

    Ana Paula

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