Caros amigos e leitores,
deixo-vos aqui o prefácio completo do meu último livro Paixão em 5 Atos. Está fabuloso! Honra seja feita ao autor do mesmo, o Professor Doutor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Rogério Paulo Madeira.
Ana Paula Mabrouk: paixão em cinco atos
Prefácio
Erotica Lusitana ou o drama da paixão
A
publicação da obra paixão em cinco atos
de Ana Paula Mabrouk, distinguida da autora
e de o tornar, evidentemente, acessível a um público leitor mais vasto marco significativo numa carreira literária que se deseja ainda
longa e profícua, baseada como é na interação estética com a vida. Não só
por transportar, para o campo da sua poesia lírica, alguns aspetos da condição
da mulher na atualidade, vetor temático predominante na sua obra de estreia, a
coletânea de contos (e alguns poemas narrativos) intitulada Alfabeto no Feminino
(2005), na qual assomam, por vezes, de par com a crítica social de
feição feminista, os primeiros sinais de irreverência
sexual. Não só por transpor, uma vez mais, para a sua praxis poética, temas, motivos e preceitos estético-literários que
afloram no volume de Crónicas da Arte e
da Vida (2011), o qual mantém um fecundo diálogo intertextual com o poeta de
língua alemã Rainer Maria Rilke. Mas também por retomar e desenvolver, de modo exuberante
e audacioso, os temas do amor, do erotismo e da paixão que percorrem já várias das
páginas lancinantes do primeiro ciclo de poesia da autora Em Carne Viva (2010), bem como alguns outros de entre os múltiplos
poemas dispersos por diversas antologias poéticas e/ou divulgados através do
blogue literário Escrevinhando: Riscos e
Rabiscos (http://anamabrouk.blogspot.com).
É
sobretudo esta última vertente temática que confere ao novo livro de Ana Paula
Mabrouk relevância e singularidade acrescidas, permitindo-lhe inscrever-se,
inclusive, na longa tradição da poesia erótica que remonta à Antiguidade Clássica — onde avultam
os nomes de Safo, a poetisa grega, e do triunvirato romano Catulo, Propércio e
Tibulo — e, ao longo dos séculos, se estende, com
ousadia crescente desafiando a moral religiosa vigente, até à
contemporaneidade. O corpus deste
subgénero lírico é demasiado vasto e não me permite sequer nomear aqui alguns
dos expoentes máximos da literatura, incluindo a portuguesa, que foram tentados
a desviar-se dos terrenos mais amplos e mais castos da lírica amorosa para se
embrenharem nas áreas mais indecorosas do erotismo. Enquanto germanista de
formação, não resisto porém a citar, a título exemplificativo, o caso de Johann
Wolfgang Goethe. Deliciado com a descoberta de um novo amor em Weimar, logo
após o regresso da revigorante viagem a Itália, o poeta não resistiu à tentação
de compor as Elegias Romanas, cuja
publicação, em 1795, causou enorme escândalo no meio sociocultural da pequena corte
alemã, devido à forma arrojada como retratava as vivências amorosas, apesar de
ter prescindido do título originalmente previsto: Erotica Romana. Trata-se de um testemunho poético da veneração goethiana
pelo “chão clássico” e, simultaneamente, da sua paixão avassaladora (presume-se)
pela amada Christiane Vulpius, até porque, de acordo com o célebre dístico
final da primeira elegia: “És um mundo em verdade, ó Roma; mas sem o Amor / O mundo não era mundo, e Roma não era Roma.” (J. W. Goethe, Poemas.
Antologia, versão portuguesa, notas e comentários de Paulo Quintela, p. 117;
itálicos meus).
Paixão em cinco atos, obra repleta tanto de emoção e sentimento amoroso como de
sensualidade e erotismo, não pode senão ser também fruto de “uma necessidade imperiosa”
que Ana Paula Mabrouk considera como conditio
sine qua non daquilo a que, numa reflexão sobre a origem da criação
estética, chama “uma boa obra de arte” (cf. Crónicas
da Arte e da Vida, p. 33). Em meu entender, o presente livro é mais do que
isso — é a obra-prima da autora. E está hoje, em pleno século XXI, livre de
provocar qualquer escândalo no ambiente moralmente bem mais tolerante e
desempoeirado da cultura portuguesa, mesmo que acolha no título deste prefácio a
designação Erotica Lusitana.
Com
efeito, embora não seja nomeado, é o espírito de Eros que parece pairar, invisível,
sobre cada página do belíssimo volume de poemas, para se comprazer em perturbar
o coração do eu lírico feminino, como que inflamado pela tocha e trespassado
pelas flechas do deus grego do amor. Não se pense, todavia, que é no sempre atrativo
conteúdo erótico que reside o fascínio exclusivo deste livro provido de grande
coesão, quer temática, quer estrutural, traço este que lhe incute considerável originalidade.
Efetivamente, se é certo que o título — paixão
em cinco atos — enuncia a centralidade temática da paixão, ou seja, do
sentimento ou do amor intenso, obsessivo e irreprimível pela razão, denuncia igualmente
a estrutura caraterística do drama tradicional, tal como foi teorizada por
Gustav Freytag (A Técnica do Drama,
1863). Assim, ao sublinhar o dramatismo da paixão e ao postular a hibridez estético-formal
da obra, a poetisa cria a expetativa de uma leitura acrescida de tensão e
emoção que, de resto, não demora a ser comprovada.
Em
conformidade com tais premissas, Ana Paula Mabrouk opta por uma macroestrutura
piramidal em que os 57 poemas se encontram criteriosamente distribuídos — quais
cenas de um drama amoroso — pelos cinco atos que compõem o ciclo cuja essência
genológica é assegurada tanto pela ausência de diálogo como pelo uso da
linguagem e de outros recursos expressivos caraterísticos da poesia lírica. A
trama amorosa é encenada por meio das unidades poético-dramáticas,
invariavelmente, filtradas pela voz feminina do sujeito poético que, abdicando
largamente da rima em prol de ritmos e versos livres de grande harmonia e recorrendo
a metáforas e imagens de enorme beleza e poder de atração — não raro imbuídas
de um erotismo desassombrado —, nos confronta com os seus sentimentos mais
íntimos na busca incessante da felicidade através da concretização plena do
amor-paixão.
O
amor, a paixão, se preferirmos, constitui justamente o longo fio condutor da
ação que progride, em crescendo até ao terceiro ato, para seguir em curva
descendente até ao desenlace no quinto ato. O ato inicial, feito de poemas graciosos
que ilustram os jogos de sedução (p.
4s.) e encantalento (p. 9) — um dos
títulos e dos encontros mais sublimes da obra —, abre com a abordagem (p. 3) de um sedutor “felino
feito para amar” e fecha com a certeza da paixão, simbolizada pela cor vermelha dos
lábios e da rosa (p. 13). A cortina do ato seguinte abre-se com aquela que
aparenta ser a primeira relação sexual protagonizada pelo eu lírico feminino e
o homem mais tarde identificado, num outro poema escaldante, como picante africano (p. 28). O poema naquele momento (p. 15) configura, por
conseguinte, o primeiro dos numerosos “momento excitantes” que compõem a
tragicomédia da paixão, a partir do segundo ato, incendiando os sentidos com a
intensificação gradual do desejo carnal e dos contornos eróticos das cenas,
como lua cheia (p. 20), quero-te (p. 23) e tentação (p. 24), p. ex., intercaladas com momentos poéticos de
maior ternura em madrugada de estrelas (p.
18) ou aurora (p. 21).
É no
centro do livro, situado no terceiro ato, que a expressão poética do erotismo
atinge o momento mais alto, vigoroso e explícito, coincidindo com o clímax da paixão em cinco atos e, naturalmente,
também com o ponto supremo do prazer sexual. De facto, antecedido de um poema esplêndido
com o título no chuveiro (p. 27), surge,
centrado num neologismo, a descrição poética do estado de excitação máxima de
qualquer ato amoroso: orgasmar, orgasmei e de novo… (p. 29ss.) constitui uma trilogia de poemas que parece
reverberar, por meio da linguagem poética, o múltiplo orgasmo feminino. A
sensação de plenitude descrita no poema subsequente vem confirmar a realização sexual
imprescindível ao sentimento de felicidade da mulher (p. 32) que entra agora numa fase idílica marcada pela vida
sexual ativa e pela coabitação harmoniosa com o homem amado, revelando, numa
sequência de poemas admiráveis, a confiança audaciosa de uma mulher madura.
Veja-se, p. ex., mergulho (p. 36), coquette (p. 39) ou felina (p. 41), poema no qual o eu lírico veste a pele de uma
devoradora “gata selvagem / ciosa do que é seu”, fazendo ronronar na memória do
leitor a imagem do gato sedutor do texto de abertura (cf. p. 3).
No
quarto ato, começa a desenhar-se a curva descendente da ação, acompanhada do
acentuado decréscimo do conteúdo erótico que faz resvalar os textos para temas
e motivos próprios da lírica amorosa. É então que despontam os primeiros sinais
dissonantes da relação amorosa, ditados pelas ausências frequentes e cada vez
mais prolongadas do amado, assaltando a mulher apaixonada com sentimentos díspares,
entre a euforia de quando chegas (p.
47) e a tristeza, a saudade, a solidão de no
silêncio da tua ausência (p. 50), telefonema
(p. 51s.) e noites (p. 53), p. ex.,
ou a dolorosa constatação da importância indispensável da presença física do
companheiro, pois só o amor não basta
(p. 54). O ato final, onde o erotismo praticamente já só ressurge através da
memória nostálgica (decadência, p.
63ss.), é marcado pelos dolorosos sentimentos de perda e de desgaste (sonho, p. 59s., turbilhão de sentimentos, p. 62) e pelo fim efetivo da relação que
culmina na solidão e tristeza humanas (amor
impossível, p. 67 e finalmente só,
p. 69), mas, de igual modo, pela incerteza quanto ao desfecho (dúvida, p. 61). Aliás, os poemas finais
(vício, p. 71s. e retoma, p. 73), nos quais o sujeito
poético feminino deixa perceber que o seu amor persiste, revestem alguma
ambiguidade e permitem entrever uma nesga de esperança na recuperação da
felicidade e do amor perdidos.
No
entanto, não é somente o desenlace deste drama da paixão que permanece em
aberto. Dado que estamos perante um livro de poesia, ou seja, uma obra cujas propriedades
distintivas consistem justamente na elevada ambiguidade, ou polissemia, e na
subjetividade, não pretendo, de modo algum, coartar ou condicionar a liberdade
interpretativa do leitor. De resto, fazendo fé nas palavras da própria poetisa
(distanciada de tendências mais abstracionistas e herméticas de alguma lírica
coeva), é o texto, a obra de arte poética que contém o gérmen potenciador de
leituras várias: “um poema não cogita / frutifica”, conclui, num poema
autorreflexivo divulgado no seu blogue sob o título Um poema não se explica.
Assim,
estas considerações prévias não visam senão sugerir alguns caminhos possíveis
para a leitura deste livro inédito. Assiste a cada leitor do ciclo paixão em cinco atos, bem como de cada
um dos seus poemas, o direito de seguir ou de ignorar tais sugestões, claro
está. Até porque, em última análise, a poesia, em particular, e a literatura,
em geral, acaba por ficar inteiramente entregue ao saber e ao sabor de cada
leitor. Como refere Ana Paula Mabrouk, na supracitada crónica sobre a Obra de arte: “A obra surge e diz:
eis-me aqui. Sou real, concreta e duradoura. Vim para ficar. Julgar? Julgue
quem possa, quem saiba ou quem sinta em quantidade e qualidade suficiente para
me entender.” (Crónicas da Arte e da Vida,
p. 33).
Rogério Paulo Madeira
Coimbra, 10 de maio de 2013