informo que foi distinguida com uma Menção Honrosa nos XI Jogos Florais de Avis pelo meu conto A Morte do Poeta. Este ano o tema subjacente era Ser Poeta.
Agradeço à ACA AVIZ a distinção e desejo a continuação do bom trabalho qu esta associação tem levado a efeito. Parabéns a vós também!
Deixo aqui ficar o texto premiado. Disfrutem da sua leitura.
A Morte do Poeta
«Morreu o Poeta!» O grito repetido ecoou pelas ruas
estreitas e silenciosas do povoado triste. As palavras correram velozes,
batendo nas vidraças das janelas ensonadas, espreitando os vãos de escada onde
dormiam os gatos vadios e esgueirando-se atrevidos pelas fechaduras dos portões
de ferro, esbatidos pelo sol abrasador da meia tarde. Foi um grito que acordou
as gentes em sobressalto, sacudindo-os da sesta indolente de mais um dia
poeirento de verão. Um gaiato de sapatilhas rotas e calções puídos voava pela
calçada, qual papagaio ao vento, sem norte, trazendo a má nova à aldeia
adormecida.
«Morreu o Poeta?», interrogou-se o Ti Chico da Horta,
assomando à cancela da sua casita. Saltara da esteira mal ouvira os gritos do
catraio em desvario. «Coitado do homem!», resmungou entre dentes e voltou para
dentro. Já que estava acordado, puxou da navalha, cortou uma fatia de broa,
duas rodelas de paio, tragou um copo de vinho carrascão e tratou de se vestir
para terminar a jorna daquele dia.
«A sério que morreu o Poeta?», contra-interrogou o Manel
da Adega, na soleira da porta coroada por um loureiro acastanhado, dependurado
há já um bom par de meses. «Mas inda ontem o vi!», admirou-se o homem pequeno e
entroncado, de olhos vivaços e mãos avermelhadas. Passou-as pela cabeça
semicalva, esfregou o queixo quadrado e convidou os compadres para uma rodada
em honra do fazedor de versos. Sentaram-se todos ao balcão, ergueram os copos
de vidro robusto e engoliram de um trago a aguardente velha, guardada para as
ocasiões solenes.
«Morreu o Poeta!», repetiu incrédula a Ti Maria das
Rezas, vinda da sua terceira visita diária à igreja. Parou a meio da escadaria,
olhou em redor e abanou a cabeça, repetidamente. «Paz à sua alma!», deixou
escapar apiedada do santo homem e, benzendo-se em cruz, reentrou na igreja
secular e foi rezar um terço vespertino.
«Quem diria que morreu o Poeta!», queixou-se o Avô
Janicas, numa lengalenga arrastada que murmurava a quem passava. Estava sentado
no seu banco de jardim preferido, encostado à bengala encardida e pensando na
ironia da vida. Já contava oitenta e cinco anos e nunca pensara vir a assistir
à morte do poeta! «Quem diria que se ia antes de mim!», continuava num discurso
de espanto e de incredibilidade.
E assim, de uma forma piedosa e respeitadora, todos os
habitantes do povoado triste lamentaram a morte do Ti João das Couves, mais
conhecido como o Poeta.
Era um homem pacato, sério, metido na sua própria vida.
Nunca lhe ouviram uma palavra mais rude ou menos cortês contra quem quer que
fosse. Tinha um rosto simpático de ancião, emoldurado por cãs escassos e
sedosos, olhos castanhos e meigos, e uma voz grave e doce que só usava quando
sentia que era absolutamente necessário. Não era vaidoso e o epíteto de Poeta
granjeara-o por rabiscar versos nas margens do Amigo do Povo e por declamá-los
aos domingos, quando descia do seu monte até à aldeia que o vira nascer.
Gostava de passar os domingos sem pressa entre os seus
iguais. Aparecia sempre cedo, de fatiota domingueira e sapatos engraxados.
Assistia à missa do Sr. Padre dos Silvais, antigo colega da escola primária e,
em seguida, os dois amigos de longa data seguiam para a casa pastoral, onde
tinha lugar o tradicional almoço de domingo. A Ti Elvira, cozinheira de mão
cheia, preparava os pratos mais apreciados, segundo as estações do ano. Favas
com chouriço, migas com toucinho frito, sopa de feijocas com couve-galega e
entrecosto e, às vezes, quando o peixeiro aparecia com peixe fresco, uns
carapauzitos com molho escabeche. Para sobremesa, um arroz doce com flores de
canela desenhadas ou uma tigelada generosa. De chorar e pedir por mais! A gula
era o único pecado do Sr. Padre dos Silvais e o Poeta, embora não fosse um
homem dado aos prazeres da carne, acompanhava o amigo neste repasto dominical.
No fim do almoço, costumavam sentar-se no alpendre, em
duas cadeiras de vime forte e saboreavam vagarosamente um licor de figo, de
receita caseira. Um primor! Ficavam ali perdidos nas horas e na conversa até o
padre cochilar a sua sesta no entardecer que se avistava sobre os campos e os
montes. O Poeta aproveitava aqueles momentos de silêncio para ler o jornal,
escrevinhar os seus versos ou procurar na biblioteca recheada algum livro dos
Mestres, como ele gostava de dizer. Comida para a alma, quase se desculpava.
Depois de uma merenda frugal de pão, frutas e queijo, o
Poeta despedia-se do amigo e passeava-se silenciosamente no jardim do coreto.
Cumprimentava todos em redor com um sorriso gaiato e um retirar da boina
redonda. Antes de subir ao monte ainda passava pelo Manel da Adega, bebericava
uma aguardente e declamava uns versos para quem o queria ouvir. E havia sempre
público numa terra que contava com poucas distracções. Juntavam-se os
compadres, fazia-se silêncio e da boca pequena do Poeta brotavam versos
singelos sobre a vida, o amor e a saudade. Palavras de quem escreve com a alma
lavada e a sinceridade das pessoas sem maneirismos ou afectações. Apenas o
prazer de partilhar tudo aquilo que não cabe no silêncio. Sem filhos e após a
morte da mulher de uma vida, O Ti João das Couves, inventava mundos no caderno
de folhas amarelecidas.
Era um homem estimado por todos devido à sua pacatez e
sabedoria, mas essencialmente devido ao seu respeito por tudo aquilo que o
rodeava. Nunca ninguém lhe ouvira uma palavra mais agreste ou um modo mais
brusco. As palavras eram preciosas e por isso guardava-as para as coisas
sublimes.
«Morreu o Poeta!», soluçou a Ti Elvira à porta da
sacristia. O Sr. Padre dos Silvais deixou cair duas lágrimas grossas de um amor
fraternal e preparou-se para despedida do amigo. Seria um serviço singelo, como
o Poeta. Nada de elogios fúnebres inflamados ou de oratória vácua. Leria uns
versos do amigo. Afinal esse era o seu testamento. As palavras eram demasiado
preciosas e este era o momento de as ouvir.
«Morreu o Poeta.». E o povoado triste ficou mais triste
ainda.
Ana Paula Mabrouk
Parabéns Ana! Avis espera-a no dia 18 de Maio para a cerimónia pública de entrega dos prémios.
ResponderEliminarFGL
olá, ana... que morte hein!... parabéns pelo texto e pelo prêmio...
ResponderEliminarvocê sabe qual o link que vejo os outros resultados?
abraços
márcio moraes
Obrigada, Márcio.
ResponderEliminarVejo no site da Aca Aviz ou na página do Facebook.
Um abraço
APM