quarta-feira, 1 de maio de 2013

Menção honrosa em conto - XI Jogos Florais de Avis

Caros amigos e leitores,

informo que foi distinguida com uma Menção Honrosa nos XI Jogos Florais de Avis pelo meu conto A Morte do Poeta. Este ano o tema subjacente era Ser Poeta.

Agradeço à ACA AVIZ a distinção e desejo a continuação do bom trabalho qu esta associação tem levado a efeito. Parabéns a vós também!

 
 
Deixo aqui ficar o texto premiado. Disfrutem da sua leitura.
 
 
A Morte do Poeta
«Morreu o Poeta!» O grito repetido ecoou pelas ruas estreitas e silenciosas do povoado triste. As palavras correram velozes, batendo nas vidraças das janelas ensonadas, espreitando os vãos de escada onde dormiam os gatos vadios e esgueirando-se atrevidos pelas fechaduras dos portões de ferro, esbatidos pelo sol abrasador da meia tarde. Foi um grito que acordou as gentes em sobressalto, sacudindo-os da sesta indolente de mais um dia poeirento de verão. Um gaiato de sapatilhas rotas e calções puídos voava pela calçada, qual papagaio ao vento, sem norte, trazendo a má nova à aldeia adormecida.
«Morreu o Poeta?», interrogou-se o Ti Chico da Horta, assomando à cancela da sua casita. Saltara da esteira mal ouvira os gritos do catraio em desvario. «Coitado do homem!», resmungou entre dentes e voltou para dentro. Já que estava acordado, puxou da navalha, cortou uma fatia de broa, duas rodelas de paio, tragou um copo de vinho carrascão e tratou de se vestir para terminar a jorna daquele dia.
«A sério que morreu o Poeta?», contra-interrogou o Manel da Adega, na soleira da porta coroada por um loureiro acastanhado, dependurado há já um bom par de meses. «Mas inda ontem o vi!», admirou-se o homem pequeno e entroncado, de olhos vivaços e mãos avermelhadas. Passou-as pela cabeça semicalva, esfregou o queixo quadrado e convidou os compadres para uma rodada em honra do fazedor de versos. Sentaram-se todos ao balcão, ergueram os copos de vidro robusto e engoliram de um trago a aguardente velha, guardada para as ocasiões solenes.
«Morreu o Poeta!», repetiu incrédula a Ti Maria das Rezas, vinda da sua terceira visita diária à igreja. Parou a meio da escadaria, olhou em redor e abanou a cabeça, repetidamente. «Paz à sua alma!», deixou escapar apiedada do santo homem e, benzendo-se em cruz, reentrou na igreja secular e foi rezar um terço vespertino.
«Quem diria que morreu o Poeta!», queixou-se o Avô Janicas, numa lengalenga arrastada que murmurava a quem passava. Estava sentado no seu banco de jardim preferido, encostado à bengala encardida e pensando na ironia da vida. Já contava oitenta e cinco anos e nunca pensara vir a assistir à morte do poeta! «Quem diria que se ia antes de mim!», continuava num discurso de espanto e de incredibilidade.
E assim, de uma forma piedosa e respeitadora, todos os habitantes do povoado triste lamentaram a morte do Ti João das Couves, mais conhecido como o Poeta.
Era um homem pacato, sério, metido na sua própria vida. Nunca lhe ouviram uma palavra mais rude ou menos cortês contra quem quer que fosse. Tinha um rosto simpático de ancião, emoldurado por cãs escassos e sedosos, olhos castanhos e meigos, e uma voz grave e doce que só usava quando sentia que era absolutamente necessário. Não era vaidoso e o epíteto de Poeta granjeara-o por rabiscar versos nas margens do Amigo do Povo e por declamá-los aos domingos, quando descia do seu monte até à aldeia que o vira nascer.
Gostava de passar os domingos sem pressa entre os seus iguais. Aparecia sempre cedo, de fatiota domingueira e sapatos engraxados. Assistia à missa do Sr. Padre dos Silvais, antigo colega da escola primária e, em seguida, os dois amigos de longa data seguiam para a casa pastoral, onde tinha lugar o tradicional almoço de domingo. A Ti Elvira, cozinheira de mão cheia, preparava os pratos mais apreciados, segundo as estações do ano. Favas com chouriço, migas com toucinho frito, sopa de feijocas com couve-galega e entrecosto e, às vezes, quando o peixeiro aparecia com peixe fresco, uns carapauzitos com molho escabeche. Para sobremesa, um arroz doce com flores de canela desenhadas ou uma tigelada generosa. De chorar e pedir por mais! A gula era o único pecado do Sr. Padre dos Silvais e o Poeta, embora não fosse um homem dado aos prazeres da carne, acompanhava o amigo neste repasto dominical.
No fim do almoço, costumavam sentar-se no alpendre, em duas cadeiras de vime forte e saboreavam vagarosamente um licor de figo, de receita caseira. Um primor! Ficavam ali perdidos nas horas e na conversa até o padre cochilar a sua sesta no entardecer que se avistava sobre os campos e os montes. O Poeta aproveitava aqueles momentos de silêncio para ler o jornal, escrevinhar os seus versos ou procurar na biblioteca recheada algum livro dos Mestres, como ele gostava de dizer. Comida para a alma, quase se desculpava.
Depois de uma merenda frugal de pão, frutas e queijo, o Poeta despedia-se do amigo e passeava-se silenciosamente no jardim do coreto. Cumprimentava todos em redor com um sorriso gaiato e um retirar da boina redonda. Antes de subir ao monte ainda passava pelo Manel da Adega, bebericava uma aguardente e declamava uns versos para quem o queria ouvir. E havia sempre público numa terra que contava com poucas distracções. Juntavam-se os compadres, fazia-se silêncio e da boca pequena do Poeta brotavam versos singelos sobre a vida, o amor e a saudade. Palavras de quem escreve com a alma lavada e a sinceridade das pessoas sem maneirismos ou afectações. Apenas o prazer de partilhar tudo aquilo que não cabe no silêncio. Sem filhos e após a morte da mulher de uma vida, O Ti João das Couves, inventava mundos no caderno de folhas amarelecidas.
Era um homem estimado por todos devido à sua pacatez e sabedoria, mas essencialmente devido ao seu respeito por tudo aquilo que o rodeava. Nunca ninguém lhe ouvira uma palavra mais agreste ou um modo mais brusco. As palavras eram preciosas e por isso guardava-as para as coisas sublimes.
«Morreu o Poeta!», soluçou a Ti Elvira à porta da sacristia. O Sr. Padre dos Silvais deixou cair duas lágrimas grossas de um amor fraternal e preparou-se para despedida do amigo. Seria um serviço singelo, como o Poeta. Nada de elogios fúnebres inflamados ou de oratória vácua. Leria uns versos do amigo. Afinal esse era o seu testamento. As palavras eram demasiado preciosas e este era o momento de as ouvir.
«Morreu o Poeta.». E o povoado triste ficou mais triste ainda.



Ana Paula Mabrouk

3 comentários:

  1. Parabéns Ana! Avis espera-a no dia 18 de Maio para a cerimónia pública de entrega dos prémios.
    FGL

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  2. olá, ana... que morte hein!... parabéns pelo texto e pelo prêmio...

    você sabe qual o link que vejo os outros resultados?

    abraços

    márcio moraes

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  3. Obrigada, Márcio.
    Vejo no site da Aca Aviz ou na página do Facebook.

    Um abraço
    APM

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