quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Tristezas - crónica do futuro livro "Crónicas da arte e da vida"

Estou a escrever um conjunto de 10 crónicas com base em máximas de Rainer Maria Rilke, retiradas do livro Cartas a um poeta. Algumas já foram escitas o ano passado e publicadas neste blogue; outras estão a ser escritas este ano e são ainda virgens em termos de publicação online. Falta-me apenas escrever a última; o que conto fazer até ao final do mês.
Publico hoje uma das ´mais recentes que escrevi. Espero que gostem.

Crónica IX

Tristezas

“As tristezas são alvoradas novas em que o desconhecido nos visita.”

Já fui feliz um dia. Tão feliz que agradeci a Deus e prontifiquei-me para morrer. Vaidade pueril: como se nós tivéssemos o direito de decidir o que quer que fosse… Encaro esses momentos de felicidade como uma partilha suprema e um dever posterior para com os outros e sobretudo comigo própria.

Há pessoas que são seres abençoados. Seres raros a quem o conhecimento supremo foi oferecido para lá do óbvio. Não sei porquê. Nem sequer sei se são merecedores de tal distinção. Mencionaria o acaso mas não acredito na futilidade dos acasos ou das coincidências. Sei apenas que alcançam muito além do visível e sentem multiplicados por muitos. Lembram tudo e perdoam quase todos. Um dia, quem sabe, atingirão o nirvana.

Nos momentos de dor nunca rezei a sério; nos momentos de felicidade sempre orei ao Altíssimo. Serei ingrata, para muitos que acreditam que é nos momentos de tristeza que se deve pedir ajuda e aconselhamento. Talvez seja demasiado orgulhosa para o fazer. Ou talvez fosse a dor imensa que me esmagava a garganta e sufocava as palavras, até as mentais. Até as que se dizem com a alma. Cheguei a pensar que era a descrença num Deus que velava por mim que me emudecia. Sei agora que estava errada.

Nas minhas horas de tristezas – e meu Deus foram tantas! – o desconhecido visitou-me. E como tudo o que é desconhecido gera temor e incompreensão, fechei-me num casulo. Coloquei as mãos sobre os ouvidos, as pernas em posição fetal de defesa e selei o coração à bondade dos demais. Tememos continuamente tudo o que não entendemos. É uma atitude primitiva de seres monoplanetários. Abrimos os olhos de espanto enquanto o ânimo bate descompassado no peito. Abandonamos o real e diante da nossa ínfima pequenez. Somos seres tão minúsculos que não abarcamos as forças cósmicas que nos envolvem. Não alcançamos os labirintos da vida nem os seus patamares de sabedoria. Temos medo do escuro, das portas fechadas, do rangido dos degraus do tempo. Receamos os túneis alongados e a luz no seu fundo. Preferimos os salões iluminados e os móveis que conhecemos de cor. Receamos tudo o que se encontra fora da nossa zona de conforto: temos medo do medo.

Conheço muita gente que viveu sempre do lado solar. Levou uma existência tranquila, sem sobressaltos. Nunca tiveram tristezas conhecidas nem sobressaltos imprevistos. Toda a sua vida foi planeada e executada se um único desvio. São invejados, cobiçados e alvos da admiração. E contudo nunca foram felizes a ponto de poder morrer…

Aprendi pela vida fora, e com ela, que as tristezas antecedem os e procedem dos momentos de felicidade. É nesses momentos que uma força inexplicável nos invade e nos testa. Trabalhos de Hércules; montanhas de Atlas; Sísifo e Dédalo. Trabalhos árduos em montanhas áridas, onde sopram tempestades de areia. E nós, grãos de areia, ou somos esmagados pelas duras pedras que rolam encosta abaixo, ou deixamo-nos guiar pelo vento até lugares longínquos. Até oásis nos quais mergulhamos a boca sequiosa nas águas frescas da sabedoria. De joelhos no solo gretado, sorvemos, com as mãos em forma de concha mundana, o bálsamo para as dores do corpo e da alma. Esse lago medicinal mais não é do que o repositório das lágrimas salgadas que chorámos um dia. Todas elas sábias guardiãs do devir.

Descobrimos então que o tempo, esse ladrão dos segredos, roubou toda a salinidade e deixou as águas límpidas de algas e depuradas de rancor. Miramo-nos nelas e como num espelho mágico, vemos o nosso ser, sem artefactos, ali no espelho de água. E nesse momento, em que um outro Eu nos fixa do fundo de nós, podemos saber se passámos o teste ou se sobroçámos noutro lago salgado, a quilómetros de nós.

O desconhecido traz-nos a escolha: morrer de tristeza ou preparar o nosso coração para um dia, outro dia, poder vir a morrer de felicidade. Pode-se nascer muitas vezes numa só vida e morrer outras tantas de felicidade plena. Só precisamos de deixar a porta aberta a novas alvoradas. Sem ter medo do medo.


Casais do Campo
5 de Junho 2010
1h 20 a.m.

2 comentários:

  1. Obrigada recém-amigo e colaborador. Espero poder enriquecer o meu livro com as tuas belas (esteticamente falando, claro!) ilustrações.

    Beijos e bom trabalho.

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