sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Futuro

VIII Jogos Florais de Avis (2010)


Modalidade – Prosa (3º prémio)

Conto subordinado ao tema «O Futuro»


O Futuro

Encontrava-me na encruzilhada da vida. Era um entroncamento de caminhos errantes, de auto-estradas vorazes, de trilhos sinuosos e de rotas assinaladas. Já as havia percorrido a todas, em tempos e compassos diferentes. Já fora todos e ninguém.

Chegara a um ponto na vida em que seguir em frente exigia escolhas e estava tão cansada de fazer opções. Apetecia-me, pura e simplesmente, parar. Sentar-me na berma do caminho e ver a vida passar diante dos olhos e dos anos. Estava exausta dos dias e doía-me o cumprimento do sentido do dever. Queria paz de espírito e recolhimento de alma.



Descalcei as botas de caminhante e descansei os pés no orvalho das ervas daninhas. Recostei as costas num carvalho centenário e fechei os olhos. Sorvi, sôfrega, a humidade da manhã vestida de cinza. Fiquei ali, muito quieta, quase sem respirar, como a querer anular-me na paisagem. Desistir: dexistir.

Encaracolei-me na minha concha de anonimato e fiquei. Invernei confortavelmente na friura da Primavera que teimava em não cumprir calendários.



O Futuro? Sei lá eu do devir! Tantos planos gorados, tantos sonhos acordados, tantas vidas emaranhadas… Uma encruzilhada; um nó para desatar; um novelo para fiar. E uma ausência de vontade; uma agonia de ânimo; uma paralisia vertebral. Enquanto a vida me permitir, ficarei sentada na berma da estrada: descalça e desnudada.



A mente vagueou, absorta, alheia à realidade que me gelava os pés e a alma. Só o meu centro de gravidade emanava calor. O meu útero irradiava impulsos e aquecia-me o ser. Havia uma promessa por cumprir. Uma semente ansiosa por germinar. Uma pré-vida que insistia em me lembrar que os rios nem sempre correm para o mar. Há maremotos que desafiam leis e produzem mudanças irreversíveis. Paraísos que, subitamente, desaparecem e outros que, por artes de magia, aparecem do nada. Há mistérios que não foram feitos para serem desvendados. Perde-se o oculto: ganha-se a desilusão. Melhor é não procurar razões. Aceitar o encantamento, sem grandes perguntas. Aquela esperança por cumprir, tão poderosa quanto invisível a olho nu, parecia ter vontade própria superior ao meu desalento. Queria viver.



E eu? Como receber em meus braços um ser pulsante quando todo o meu universo me implorava para sobroçar?



Finquei os pés ma terra húmida mas cálida e senti o apoio da árvore centenária, na solidez das suas raízes profundas. Existem forças telúricas, maiores do que a existência das vidas comezinhas, e que movem planetas e fazem girar universos e sistemas solares. «E contudo: ela move-se!» Alheia aos rancores dos Homens e às razões da Humanidade.



Um pontapé fez-me despertar daquele torpor. Havia uma premência em querer romper barreiras de segurança e líquidos amnióticos tépidos. Havia razões para querer abrir os pulmões na friura da vida cá fora. Gritar e abrir os olhos e cortar cordões umbilicais. Mantendo laços intemporais de intimidade e de partilha genética. E com sorte, e alguma sabedoria, de amor e ternura inenarráveis. Sem necessidade de palavras: apenas a cumplicidade de um olhar. O mesmo sentir, o mesmo pulsar e um fio que nem mesmo as Parcas conseguirão um dia cortar. Vim para ficar – parece sussurrar aquele ser miraculoso.



Então, calcei as botas de caminhante e levantei-me do chão. Mirei a encruzilhada e escolhi um caminho em cujo horizonte um raiozinho de sol parecia brilhar, muito tímido, quase a medo. Havia uma esperança para me guiar, um futuro ainda para cumprir. Havia duas novas vidas para viver.

2 comentários:

  1. parabéns, Ana Paula, pelos prémios recebidos. gostei de ler o teu conto "O Futuro".

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  2. Obrigada mais uma vez.É sempre bom termos uma palavra de incentivo.

    Ana Paula Mabrouk

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