Caros amigos e leitores,
deixo-vos aqui o meu conto premiado: A Notícia. Espero que gostem.
Foi naquele dia de
festa. Uma festa ruidosa, de mil vozes coroada. Rostos novos cruzavam-se no
espaço já gasto da sala de cheiros antigos. Havia sangue novo nos amores dos
netos e uma felicidade tranquila nos olhos dos avós. Uma mirada benévola de
quem já teve amores novos e, ainda que lembrando, já não lhes distingue os
traços na névoa da memória.
Circulavam canapés
de histórias, regados com aperitivos de alegria. Era um prólogo feliz de uma
história familiar cuja tradição se perdia no tempo. Um álbum com folhas de
passado, presente e futuro. Uma foto reportagem de gente real com enredos
prosaicos mas com personagens vincadas. Que choram, riem e contam histórias de
vida.
Em breve entrariam
as terrinas da canja com ovos de promessas e as travessas abundantes de saladas
mistas de projectos das gerações mais novas. Seguir-se-iam pratos de peixe e
pratos de carne para todos os gostos e diferentes paladares. Viriam
acompanhados por brancos leves, borbulhando de energia e tintos maduros, de
resistência feitos.
A algazarra das
vozes elevava-se da mesa dos comensais e lutava-se por uns momentos de atenção
familiar. Cada um tinha uma novidade premente, de importância capital nas suas
vidas breves. Os mais velhos escutavam em silêncio, habituados à espera. Sábios
guardadores das estórias das suas vidas longas.
Paciência e
intervenções oportunas compensariam o fim da fila. Os primeiros das últimas
estórias. O primeiro lugar do saber.
Todos se calariam
para dar lugar ao comentário do avô Francisco ou à anedota do avô Joaquim.
Marotice nos olhos brilhantes e vagares nos lábios trémulos. Verdadeiros
almanaques ambulantes de tradição oral.
Entre dentadas de
prazeres terrenos, a satisfação da gula. A curiosidade em relação à Irina, a nova
namorada ucraniana do João: jovem esbelta e de traços clássicos. Muito
magrinha, esta estrangeira! – diria a avó Camila. Elas não comem? O que você
precisa é de uma bela canja de galinha caseira e um naco de carne assada. Oh,
mãe! – diria eu contrariada. Deixe a miúda em paz. A mim, o que mais impressão
me faz, é o guedelhudo da Guidinha. Não há tesouras lá no país de onde vem? –
indignava-se a avó Carolina, em confidência na cozinha. Desde que não faça
rabos-de-cavalo como o anterior… Menos mal! – diria o avô Joaquim, à socapa.
São outros tempos – apaziguaria eu, em tom de desculpa. Pois sim, pois sim….-
resmungaria, entre dentes, a avó Carolina. Riria o João, a Guidinha responderia
com um beijo terno na testa da anciã.
São boas pessoas – remataria eu a
conversa e os enfeites da travessa.
E
boas pessoas eram. Num Portugal de miscigenação do século XXI, na boa tradição
de exploradores da nossa História, aqui estávamos nós a descobrir o mundo e a
dar outros novos mundos ao nosso mundo. Entrecruzar de raças, entrelaçar de
culturas, estreitar de filosofias de vida.
No
meio de tanto saber diferente, só eu tinha um saber que todos desconheciam. Uma
notícia que calava no nó da garganta. Uma novidade que não podia ser dada a uma
mesa de festa. Uma má nova que arruinaria o almoço dos filhos e dos amores dos
filhos, avós e pais de um amor que um dia se foi embora.
Era
o pilar de uma família e sentia-me com pés de barro. Estátua cuja inscrição na
base estava oculta pela fotografia de família. Linfoma não combina com festa de
Verão nem rima com alegria. Não se serve à sobremesa com Charlotte de chocolate
ou Bavaroise de ananás. Nem sequer acompanha bem o café que culmina o repasto
familiar. Num Domingo de longa pausa gastronómica, o segredo da receita ficara
bem guardado. No livro de culinária do coração. Saber nem sempre é sabor.
Guardei
pois a notícia para mim e engoli-a com café aromático doce, servido em chávena
de porcelana. Com requinte. Até para se calar é preciso ter delicadeza.
Olhava-os com os olhos da alma e pensava se tudo isto seria o começo do fim ou
um novo começo de um fim adiado. Uma fatalidade ou uma oportunidade, servida de
bandeja? Uma noz podre no cesto dos frutos para saborear ao serão, sob o céu
estrelado ou uma cereja na última fatia de torta cremosa? Era preciso escolher
e ter a sorte do nosso lado na hora decisiva. E rezar para que o mundo
conspirasse a nosso favor.
Olhei-os
uma vez mais e sorri, pensando que aqueles que amamos não precisam de saber
tudo sobre nós, o tempo inteiro. Por vezes o melhor saber é, de facto, não
saber nada. Nem suspeitar, nem indiciar, sequer. A melhor opção é sempre viver.
O futuro será sempre aquilo que a vida decidir. O presente é nosso para o
agarrar com ambas as mãos e erguer uma taça à nossa saúde.
Brindamos?
– perguntou o João.
Saúde!
– gritaram todos, com os copos de champanhe a transbordar de esperança.
Ana Paula Mabrouk
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