quinta-feira, 10 de maio de 2012

Número cem - novo conto

Era uma notícia pequenina no canto superior direito. Meia dúzia de linhas na coluna das breves. Apenas o título captava a atenção: «Idoso número cem morre em casa.» Tinha sido um longo inverno, com temperaturas rigorosas, estirpes de gripes multiressitentes e a palavra crise mil vezes estampada nas paragonas dos jornais. A notícia era apenas mais uma na mancha monocromática das desgraças nacionais. Notícia triste num país triste, submergindo num pântano de inércia e de conformismo. País de habitantes cinzentos sem força anímica para vencer preconceitos e lançar mão do próprio destino. Seres lamurientos, afundando-se num quotidiano pardacento. Os clientes do Café Central passavam os olhos apressados pelo jornal que jazia sobre as mesas gastas e não se detinham na notícia da morte por muito tempo. Havia ainda que lastimar o fecho de dez empresas no norte, a subida do desemprego, as medidas ácidas da Troika, os queixumes e pedinchices dos governantes, os cortes nos ordenados, nos feriados, nas férias, nos subsídios, no reembolso do IRS… Tão pouco tempo antes de picar o ponto e tanta coisa para lamentar! Por isso, ninguém conseguia compadecer-se longamente de mais um idoso anónimo no extenso rol das agruras diárias. Era mais um. Um número redondo na estatística. Um número de três dígitos. A notícia não diferia das anteriores noventa e nove: um idoso octogenário fora encontrado já sem vida no seu leito. Os vizinhos já não o viam há alguns dias e tinham chamado os bombeiros que, após relutância inicial, tinham arrombado a porta e encontrado a vítima. O cadáver apresentava alguns sinais de decomposição. A televisão estava ligada mas sem sinal pois não havia aparelho de TDT. A vítima tinha sido levada para o Instituto Médico Legal para se efetuar a autópsia e os parentes mais próximos tinham sido contatados. Era tudo. O que a notícia não contava era que os bombeiros tinham entrado no apartamento minúsculo e encontrado na mesinha de cabeceira a dentadura postiça num copo de águas turvas e pestilentas, juntamente com uns óculos anquilosados, cujas hastes estavam amarradas com fita-cola endurecida e negra do suor. O quarto cheirava a podridão, pobreza e abandono. Os móveis eram parcos e velhos, ostentando um caruncho instalado por décadas de negligência. O que a notícia não contava era que a Dona Ermerlinda da mercearia, que entrara após os bombeiros, se deparara na cozinha com um prato com restos de sopa ressequida e um pedaço de pão empedernido. A sua curiosidade mórbida foi substituída por uma réstia de peso na consciência ao relembrar o corte nos fiados. «Uma mulher também tem que pagar as contas, que diabo!» O que a notícias não contava era que o primo Baltasar, que veio do Algarve para o funeral, encontrara apenas dois pares de calças puídas, duas camisas de flanela com o colarinho roto e um casacão com apenas um bolso. O único par de sapatos tinha a sola gasta e um deles tinha um buraco na biqueira. A notícia era um borrão de tinta em redor do número cem: um óbito com um nome impresso em letras minúsculas que ninguém reteve na memória. Ninguém que lesse a notícia suspeitaria que o idoso octogenário decidiu, um belo dia, despedir-se do seu banco de jardim e deitar-se na sua cama, companheira de muitos invernos solitários, para não mais se levantar. Decidiu murchar no deserto de um Dezembro sem chuva que irrigasse as suas raízes cansadas. Tombara como as árvores na secura de uma travessia cujas fontes calaram a tristeza da sua esterilidade. Ficou apenas uma notícia da sua passagem no canto superior direito de um jornal local, lida apressadamente entre uma bica matinal e um cigarro nada pensativo. Ana Paula Mabrouk Este foi o último conto que escrevi, inspirada nos acontecimentos deste inverno . A vida a inspirar a arte...

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