Crónica VII
Amor a dois
«O Amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são pequenas preparações.»
Fui educada para crescer, acreditando que ia encontrar um grande amor, casar e permanecer em estado de graça para sempre. Não que tivesse exemplos reais em meu redor que comprovassem esta filosofia de vida. Todos os casamentos que conhecia eram a prova viva do provérbio «Faz o que eu digo, não faças o que eu faço».
Cresci rodeada de desamores e rancores e incredulamente pensei que um dia iria encontrar alguém especial e construir uma relação sólida, diferente da dos outros. Santa ignorância e arrogante presunção!
Por que razão as escolas e as famílias não preparam as raparigas e os rapazes para viverem uma relação baseada na confiança e na partilha? As mães continuam a oferecer bonecas, carrinhos de bebés e utensílios de cozinha às suas filhas. Lêem-lhes livros de encantar e compram-lhe acessórios de princesas. Todas elas com caras resplandecentes, corpos fenomenais e bens de consumo topo de gama. Os pais escolhem carros de corrida, bicicletas de montanha e levam os filhos às actividades extra-curriculares, estimulando a competição e a ambição de terem um filho campeão de todas as suas frustrações. E os miúdos lá vão crescendo e imitando os modelos que lhes deram até que, inevitavelmente, os dois mundos se encontram.
Primeiro, é o deslumbramento da descoberta: existem seres diferentes do outro lado da vida! Pasmem os céus e a Terra! Em seguida, passa-se para o encantamento: tudo é mágico, tudo é cúmplice, tudo é intenso. Os dias e as noites correm céleres, sem tempo para que o fogo deixe descobrir que as labaredas têm nuances de cor. A voracidade das novas emoções cega a percepção e esconde os trambolhões da realidade. Seguem-se os projectos para o futuro, a luta a dois por planos de vida, traçados em horas de insónia criativa. Com o passar dos anos a lufa-lufa do dia-a-dia encarrega-se de manter os dois seres tão ocupados que eles se esquecem de interrogar as razões que lhe subjazem. Vão vivendo, lado a lado, mas não em sintonia plena, de quem partilha uma vida com alguém que nos compreende e perdoa as imperfeições. Alguém que aceita o facto de não sermos o sonho perfeito que em tempos sonharam.
Um dia, inexoravelmente, acordam e estranham-se. Olham-se e vêem-se pela primeira vez, como realmente são e o choque inicial é tal que deixa marcas para sempre. Normalmente a realidade nua e crua confronta-os com dois mundos paralelos, separados por Himalaias de aspirações e de projectos pessoais. Compreendem, finalmente, que o caminho que os trouxe até aqui, tão bem sinalizado por placas azuis e indicações gigantescas, já não voltará a ser o mesmo. Acabou a auto-estrada, a via está em obras e existe uma série de circuitos alternativos. É preciso pensar, decidir, escolher e chegar a um consenso quanto ao caminho a seguir. Ou não.
Essa experiência difícil e dolorosa de continuar a entrega a outro ser humano tão longe das nossas fantasias é, sem dúvida, o mais alto testemunho de nós próprios. Amar alguém estando lucidamente acordado para a realidade é uma tarefa hercúlea. Não conheço obra que exija maior preparação e tenha tamanho índice de fracasso previsível. Quem corajosamente e informadamente escolher percorrer os restantes carreiros da vida, não lado a lado, mas com um só traço de pegadas na areia, recebe da minha parte a mais sentida ovação. Deveria haver um Prémio Nobel para o Amor.
E não afirmo isto de ânimo leve ou subitamente acometida por uma pieguice, tão própria do que alguns apelidam de sexo fraco. Há muitos anos atrás, olhando para um casal de velhotes, de mãos dadas, pacificamente sentados num banco de jardim chorei. Chorei de frustração perante um sonho de infância, que já fora o meu, e que eu perdera algures, pelo caminho. Chorei de inveja por não ter conseguido atingir o estádio de sabedoria daqueles seres. Chorei de pena por aquele instantâneo não ser o meu.
Ontem assisti a outro episódio curioso. Numa fila de um aquaparque, frequentado maioritariamente por casais jovens, deparei-me com um casal francês, seguramente acima dos sessenta anos. Trocavam chalaças, riam-se jovialmente dos gritos dos mais novos e, a certa altura, beijaram-se apaixonadamente. Um beijo na boca, longo, sentido, com os braços enlaçados em redor das respectivas cinturas. Observei o espanto nos olhos dos vários adolescentes e até mesmo uma pontinha de escárnio em alguns. Sorri. Senti uma alegria genuína por encontrar dois seres maduros que, chegados ao fim da auto-estrada, optaram e souberam manter a sua escolha de felicidade partilhada. Imaginei quanto esforço não foi necessário para levar a cabo esta obra-prima. Sorri de contentamento, de inveja boa (que também a há), de júbilo por poder ser testemunha daquele exemplo de vida. Enquanto eu filosofava, anónima entre a multidão, os dois deslizaram por um tubo de água que terminava numa queda abrupta. Deram um valente trambolhão mas levantaram-se logo, em seguida, às gargalhadas. Eu, turista acidental, ovacionei-os de pé.
Hotel Grand Dauphine,
Toulon
21 de Agosto 2009
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