segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Novo livro - Vivências


Acabada de chegar do Brasil, a nova Antologia Vivências contém uma crónica minha que granjeou o 3º lugar. Aqui fica ela: profunda e intimista.



TESTAMENTO
Dizem que existem pessoas que pressentem o aproximar da morte. Algumas rezam, outras festejam os derradeiros momentos, outras ainda cometem actos extravagantes, para que possam ser lembradas. Sempre pensei que se deve morrer como se viveu em vida. Uma espécie de coerência, levada até às últimas consequências.

Dado que sempre me senti sozinha no mundo, mesmo nos momentos em que estive acompanhada, penso que este é o fim digno para mim. Nunca gostei de aborrecer os outros com os meus problemas, assim como nunca gostei de deixar os meus assuntos por resolver. Não se trata de uma atitude egocêntrica, do tipo “orgulhosamente só”, apenas um registo pessoal. O meu. Simplesmente.

Hoje sinto que esta dor que me atormenta o coração e o braço direito, há já algum tempo, se tem feito sentir de forma particularmente acutilante. Como que a dizer que o meu fim se aproxima a passos largos. Ataques convulsivos de choro irrompem do nada, num assomo que não consigo controlar. Todo o meu corpo fala comigo e me instiga a tomar medidas urgentes. Decidi escutá-lo, pois sei que a sua fragilidade nunca conseguiu acompanhar a teimosia do meu espírito. Demasiado rebelde para ser contido por um corpo de mulher que a idade não deixa esquecer.

Poderia ter ido ao hospital, numa atitude sensata e madura. Poderia ter adiado este fim precoce. Mas para quê? Os médicos mandar-me-iam levar uma vida mais calma, sem tanto trabalho, nem stress. No entanto, a minha realidade não se compadece com prescrições médicas. Então, de que me adianta ir ao hospital adiar o inevitável por mais alguns meses e, acrescentar dores, sofrimento e vergonha ao resto dos meus dias? Nada: mesmo nada. Sejamos práticos, então. Façamos um testamento e deixemos o destino, Deus ou o que for que controla a minha existência, seguir o seu rumo. Naturalmente.

O choro parou as suas vagas sucessivas de irupções de marés vivas, mas a dor aguça-se e é premente avançar neste mar revolto de final de dia.

Gostaria de deixar muitos bens materiais e palavras de conforto para todos, mas essa não sou eu. Lamento. Parece que passei a vida inteira a pedir desculpa por quem sou…Não sou rica, bem-sucedida, bonita, socialmente considerada, nada que valha a pena no Portugal de hoje. Falhei em tudo e fracassei com distinção. Sinto que nada do que fui ou fiz valerá uma linha num periódico ou num jornal nacional, em prime time. Levei uma existência medíocre entre gente pequenina. Ah Lilliput sem Guliver !

Sinto-me impotente para mudar a minha vida e perdi a esperança, de forma definitiva e irreparável. Vagueio nos dias, atormento-me nas noites. Nem coragem suficiente tive para pôr termo a esta angústia. Não quis alguma entidade superior ou apenas reinou a minha incompetência. Parece que este corpo frágil foi cativo, durante muito tempo (tempo demais, quanto a mim) do espírito caprichoso. Qual borboleta, sobreviveu a furacões, tremores de terra e ondas gigantes. Nem ventos agrestes, nem solo conturbado, nem águas profundas. Uma insustentável leveza do ser…

Comprimo o peito com a mão direita e entendo que este corpo está finalmente cansado. Anseia por um repouso sem fim. Reclama a paz a que tem direito. O descanso dos guerreiros, no final de tantas batalhas. A panaceia da alma retalhada e do rosto contorcido pelo agonizar de tanto sangue derramado em vão. Já chega! Cai a máscara, a armadura e a espada enferrujada. As sandálias empoeiradas estão gastas de tanto palmilhar…

Gravo a mensagem, temerosa de que a ceifeira não me dê tempo de terminar o meu legado. Talvez fique a meio caminho, talvez nunca chegue o manuscrito às mãos que saibam reconhecer os caracteres e pictogramas. Talvez fique a meio do desenho de um pássaro ou de um rio. Quem sabe de um molho de trigo em tempo de ceifa? Outono da vida. Final de um painel de estação que fecha um ciclo e não tem tempo de abrir outro.

Em tempos idos sempre acreditei que, se trabalhasse com afinco para conseguir aquilo que queria, um dia haveria de lá chegar. Acreditava, ingenuamente, que o meu futuro apenas dependia de mim e da minha capacidade de luta. A vida encarregou-se de demonstrar a falência da minha crença e de vergar o meu orgulho pueril. Grande parte daquilo que nos acontece na vida, nada tem a haver com a nossa aguerrida batalha diária ou sequer é fruto das nossas escolhas. Acaso, forças cósmicas, fato ou vicissitudes são partes integrantes e imprevisíveis desta nossa passagem terrestre. Não escolhemos doenças, acidentes de automóvel, falências das empresas nas quais empenhámos suor e lágrimas, mortes de familiares, amantes e amigos e fracassos de relações interpessoais. Algumas pessoas continuarão a afirmar que apenas colhemos os frutos das nossas escolhas profissionais, pessoais ou afectivas. Pois eu garanto que não. Pode-se passar uma vida inteira de integridade, responsabilidade civil e ética social e colher apenas amargos de boca. Quanto aos corruptos, exploradores e egocêntricos compulsivos, é vê-los a desfrutar a vida, com direito a tudo aquilo que roubaram aos demais.

Isto nem é sequer um lamento ou uma recriminação pessoal. Já há muito que me deixei disso. São apenas divagações de quem já não tem mais nada a perder. A não ser a própria vida. No vazio crescente do meu cérebro, instalou-se uma lucidez temerária. Um tratado de luz e acidez…

Não sei se ainda tenho tempo, mas queria partir com clareza e sem equívocos. Não estou a desempenhar um acto egoísta de auto-comiseração. Vejo com absoluta transparência o meu percurso de vida e reconheço que nasci para a mediocridade. Não me destaquei em nada, nunca fui excelente em coisa nenhuma, nem sequer sobressaí em campo algum. Um nome e um número num BI, sem história que valha a pena contar. Mulher, mãe, esposa, profissional anónima, como tantas outras neste país. Um rosto banal numa vida banal. Uma vida de estórias sem História para recordar. Há quem nasça para a luz e quem nunca consiga sair da obscuridade. Predestinação? Sei lá eu…

A dor instalou-se na cabeça também e uma sensação de náusea invade este feixe de nervos sem aço. Sinto que vou morrer sozinha e, pela primeira vez, tenho pena. Não sinto medo, nem tão pouco terror do que se aproxima. Apenas pesar. Ninguém deveria morrer sem companhia, mesmo que se morra sozinho. Mesmo que a morte seja uma experiência solitária. Mesmo que ninguém possa morrer connosco ou por nós. Todos os seres humanos deveriam ter direito a morrer com alguém a segurar a sua mão. Um calor de afecto na frieza que trepa corpo acima.

Despeço-me pois de todos aqueles que amei e que me amaram de volta, de todos os lugares nos quais tive lampejos de felicidade, de todos os objectos que me acompanharam nos bons e maus momentos, do meu cão que me lambeu feridas no sentido literal e me sarou mazelas na solidão das minhas horas, de mim mesma, sem recriminações nem azedume. Sempre fui o melhor que consegui ser, apesar do pouco que consegui almejar.

Parto de alma lavada e espírito liberto, consciente de que tudo deve ter um fim, embora, às vezes, ele pareça chegar cedo demais. Não consegui vislumbrar o sentido da minha existência, mas, provavelmente, a existência não pressupõe sentido algum. Nós é que temos a fatídica tentação de atribuir um sentido oculto a tudo. Provavelmente a nossa existência corresponde a um minúsculo pó cósmico de um movimento constante de fluir. Princípio e morte de constelações, planetas e pessoas. Estrelas cadentes. Meteoros incandescentes. Crateras que testemunham vidas intergalácticas.

Sinto um entorpecimento geral e um esquecimento sem riso a pedir o fecho de considerações. Chegou o momento de escrever fim no final do filme. De deixar quem assiste decidir se valeu a pena hora e meia de desfilar e desfiar de confissões e inconfidências. No meu caso, a única espectadora deste enredo, levanto-me devagar e decido correr as cortinas. Apago as luzes e saio de cena, discreta e anónima. Caminho ao encontro daquilo que me espera. Tranquila, sem lágrimas nem dores. Em paz com o mundo, mas sobretudo em paz comigo própria. Absolvida, sem o castigo do acto de contrição. Extrema bênção da sacerdotisa que finaliza em mim.





11 de Outubro de 2008

Ana Paula Mabrouk

domingo, 5 de dezembro de 2010

Lembrança

Foi naquele quarto velho –

Velho, não! – decadente

Que nos amámos muitas vezes.



Entrávamos em silêncio.

Tu desabotoavas-me a timidez

Eu desapertava-te a solidão.



Nas paredes bolorentas

Pendurávamos a tristeza

E na cama estreita deitávamos

Os corpos famintos.



Eu acolhia-te no meu abraço

Tu aconchegavas-me no teu peito

E ambos embalávamos vidas vazias.



Foi naquele quarto velho –

Velho, não! – miserável

Que vivemos nossas loucuras.



As palavras ficavam mudas

Perante a sofreguidão de uma fome

De muito tempo de ausências.



Minha mão na tua nuca alta

Tua mão no meu ventre desnudo

E no ar o cheiro a sexo premente.



Deixava no teu pescoço

Meus dentes marcados

Deixavas nos meios seios

Tua saliva máscula

E nossos corpos exibiam

Sinais de festim.



Como amava aquelas tardes ilegais

Escondidos do mundo

A descoberto de nós

Sem falsos pretextos

Nem moralismos vãos.



O meu corpo rejubilava de gozo

A magreza do teu transfigurava-se altiva

E o quarto agigantava-se.



Relembro odores, gritos, gemidos

Suspiros, rasgos de pele, vagidos

E a felicidade de um raio de sol

A pintar sorrisos nos sorrisos cansados.



Lembras-te daquela paixão muda?

Em que tudo calávamos

E tudo era dito em silêncio?

Gritado dentro de nós

E entendido sem sons?



Falamos tanto agora

E nada dizemos

Murchos vão os corpos

As almas secas

O quarto moderno clareou

O bolor habita agora os nossos corações.



20-11-2010
Ana Paula Mabrouk