sábado, 11 de setembro de 2010

Crónica IV - Ser artista (futuro livro)

Ser artista
“ Ser artista é não contar, é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva, que resiste, confiante, aos grandes ventos da Primavera, sem temer que o Verão possa não vir. O Verão vem.”
Rainer Maria Rilke

Por vezes conto os anos – os meus anos – e penso que já vai sendo tarde para singrar neste mundo das letras. Há tanta gente mais nova do que eu com nome na praça e um palmarés invejável de publicações. Há tanta gente que alcançou a fama e é reconhecida e admirada e cuja carreira literária parece correr de vento em popa. Há tanta gente…

Invejo-os, é verdade. Não cobiço a sua fama, a sua projecção mediática, a sua riqueza monetária. Invejo as páginas que chegam a milhares de leitores, as ideias que se gravam na memória de quem as lê, os pensamentos que encontram eco em mentes similares, os acordes quase perfeitos da sinfonia das almas. Invejo a harmonia dos desconcertos e os encontros de ocasião que fazem todo o sentido. Gostaria de ultrapassar as barreiras do tempo e da frigidez da rotina que faz vénia ao bom senso. Odeio o bem comum, o politicamente correcto e o bom-tom dos que não escrevem literatura. Tenho pena de quem vive acomodado e nunca soube o quanto dói um grande amor. Nem viveu em êxtase ao menos um só dia!

Ser artista não é ser ditado pelos outros: nem sequer é uma escolha. Há trepadeiras de palavras e cascatas de conotações, que ora se enrolam em espiral nos nervos do ser, ora se despenham em lagos profundos de pensamentos azuis. Enraizados e inafundáveis.

Escrevo porque não sei viver sem os meus gatafunhos em desalinho a dar sentido às horas da vida, ao relógio da mortalidade. São os ponteiros as palavras; o mostrador a alvura manchada do papel. Papel cuja origem provém de alguma árvore centenária: anéis do tempo, seiva espumando vitalidade. Seiva que brota da árvore que sou e que resiste, dia após dia, aos grandes ventos da Primavera. Resiste às promessas em flor, enlameadas, muitas vezes, pelos aguaceiros de Abril. Resiste na estação dos sonhos concretizados dos outros. Resiste no anonimato de quem escreve e há muito deixou de se interrogar porquê e para quê. Resiste porque a seiva é sadia e forte e brota do fundo da árvore, sempre verde da esperança. Mesmo quando desespera e desanima.

Seiva verde de pensamentos azuis. No branco de todas as possibilidades. Sinestesias de olhos e mãos abertos ao mundo. Vejo e sinto com a pele dos meus dedos em movimentos. Frenéticos, felinos e fantásticos. Deixo fluir o Verão que me espera e que antecipo no prazer da certeza, de que um dia outros virão folhear as páginas da árvore da minha teimosia. Frondosa, nos ramos dispersos com os quais cobrirei de frescura os dias tumultuosos. O Verão virá. O Verão não deixará de vir. O Verão sempre vem.

E eu o esperarei sem contar os dias, os anos, as vidas passadas. Meus olhos serão raios de sol e meu rosto tisnado a certeza de que o artista permanece. O artista foi é e será. Aqui; no céu estrelado; em todo o lado.


Casais do Campo

6 de Agosto de 2010

23h 21m

2 comentários:

  1. Professora, gosto imenso de ler textos da sua autoria. E se este pequeno texto está incluido no seu futuro livro, não se esqueça de me avisar quando lançar, pois quero lê-lo.

    Beijo Enorme*
    Já tenho saudades das suas maravilhosas aulas :)

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  2. Obrigada, linda!
    É sempre bom ouvir elogios dos nossos alunos que são os nossos maiores críticos.

    Beijos grandes. Vemo-nos por aí pela vida fora...

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