devido ao muito trabalho a nível profissional e a problemas de saúde familiares tenho descurado este blogue.
Deixei passar datas importantes como o Dia Internacional da Mulher, O Dia da Poesia... e tantos outros que mereciam um post.
Regressei hoje para desejar a todos uma Boa Páscoa, plena de benções e da realização dos desejos mais íntimos de cada um.
Aproveito para compartilhar a minha última crónica escrita para o jornal da escola onde trabalho sobre o tema literacia.
Que cena, meu!
Por Ana Paula Mabrouk
«Devido ao
facto de vivermos numa sociedade da informação, que se começou a falar de um
novo tipo de analfabetismo afectando a população que, apesar do aumento das
taxas e dos anos de escolarização, evidencia incapacidades de domínio da
leitura, da escrita e do cálculo, vendo por isso, diminuída a sua capacidade de
participação na vida social. Este novo “analfabetismo”, dito funcional, teria a
ver com aprendizagens insuficientes, mal sedimentadas e pouco utilizadas na
vida.
Entende-se por
literacia como a capacidade de cada indivíduo compreender e usar a informação
escrita contida em vários materiais impressos, de modo a atingir os seus
objectivos, a desenvolver os seus próprios conhecimentos e potencialidades e a
participar activamente na sociedade. A definição de literacia vai para além da
mera compreensão e descodificação de textos, para incluir um conjunto de
capacidades de processamento de informação que os adultos usam na resolução de
tarefas associadas com o trabalho, a vida pessoal e os contextos sociais.» in http://literaciadainformacao.web.simplesnet.pt/Literacia_da_informacao.htm
Dado que está o recado de forma politicamente
correta, vamos agora ao exemplo da vida prática e à sua análise de forma
politicamente incorreta.
Para quem não sabe ainda, adoro
esplanadas. Há alguma coisa na cultura do exterior, em roda de uma mesa e de um
café, que ilumina radicalmente o meu dia. Inventei mesmo um verbo maravilhoso
para a ação de adorar o sol desta forma tão mediterrânica: lagartar. Ora,
estava eu lagartando um dia destes num dos meus locais de eleição, senão quando
fui ouvinte acidental de um texto deveras admirável. Um empregado de mesa
dissertava com um seu colega de trabalho sobre a experiência de ter assistido a
Django Libertado, filme de Quentin Tarentino, protagonizado por Jamie Foxx.
Desiluda-se quem pense que dissertava
sobre a polémica da escravatura que tanto tem incomodado os EUA, país que lida
muito mal com o seu passado histórico e com o presente dos outros países. Ou
quem pense que o tema era a questão da violência nos filmes de Tarantino, que a
mim (se calhar, só a mim) parece inofensiva face à escalada de maníacos
adolescentes armados que têm dizimado escolas e universidades nos últimos anos
pelo país fora. Mas isso são contas de outro rosário, ou se calhar de outra
crónica futura.
Não, não era nada tão elevado. Da boca
deste estudante universitário (vim a saber mais tarde) saiu um discurso que vou
tentar reproduzir o mais fielmente que sou capaz. Era algo assim: «Ontem foi
ver aquele filme daquele gajo negro que gramo bué. Daquele preto de filmes de ação
e o caraças. Brutal, meu! Brutal! Tem umas cenas memo memo fixes. O gajo dá-lhe
bué e malta curtiu …estás a ver? A garina ao meu lado ainda se meteu a mete
nojo e começou a falar umas cenas maradas mas eu cá amandei-a fechar a matraca.
Quem não gosta, não come, olha então! Armada em finória c’umas palavras de sete
e meio. É mesmo brutal, meu! Tens que ir ver. Cenas memo do caraças!»
Nem sei memo por onde hei-de começar! Se pela análise lexical, morfológica
ou ideológica…
Analisemos, em primeiro lugar, as
ideias (ou a falta delas!). Perceberam alguma coisa? Eu cá, que nem me
considero burra de todo, percebi que o rapaz foi ver o filme Django Libertado e
que teve um desaguisado com outra espetadora. O que ele achou do filme, não
sei… Brutal é um adjetivo que qualifica uma pessoa bruta, desumana, violenta ou
selvagem. Não me parece que era o que o rapazola tinha em mente. Parece-me mais
que ele estava a classificar o filme como maravilhoso, fantástico, bem
elaborado, magnificamente filmado. Quanto à questão da classificação dos outros
seres humanos, enfim, o vocabulário não melhora substancialmente. O gajo (Jamie
Foxx entenda-se) não haveria de achar graça nenhuma aos epítetos negro e preto
num país que cunhou a expressão “afro-americano” como a única socialmente
aceitável. Quanto à garina, se era açoriana ou não, não sei, mas fechar a
matraca não me parece que deva alguma coisa à elegância. Deste modo, hás-de ter
muitas namoradas…Hás de. Hás de… Palavras de sete e meio, também desconheço o
significado, mas, pela quantidade de dissílabos usados, devem ser todas aquelas
que tenham três ou mais sílabas. Aquelas
memo difíceis, estão a ver?
No que se refere ao léxico, verifica-se
uma repetição dos termos brutal, gajo, cenas, memo e esse termo tão
incontornável – caraças! Ora, espremidito o discurso, o domínio vocabular deste
estudante universitário (convém não esquecer) pode ser comparável ao de um
dealer da margem sul lisboeta que desistiu da escola após a quarta classe
tirada aos tropeções. Ai, Nuno Crato, se tu soubesses como anda a deseducação
neste país…
A análise morfológica é a minha favorita,
admito! Adoro o uso de “amandei-a”. Das duas, uma: ou o rapaz é possuidor de
uma força hercúlea e agarrou na rapariga e arremessou-a
pela sala fora ou então mandou-a calar.
A conjugação verbal deve ser eu amando-a, tu amanda-la, etc. Já quanto à
palavra memo deve ser o contrapeso de
amandar: uma palavra ganha letras,
outra perde. Isto tudo numa sequência de frases com conjunções coordenativas
básicas (e, mas, que), mas com muita emoção. Veja-se a quantidade de pontos de
exclamação e de interrogação?!
Para terminar tenho um recado para este
estudante universitário: «Caro rapaz, deves continuar a ir ver cinema pois só
te faz bem à cultura. Aconselho também ir às aulas, de vez em quando, pois pode
ser que aprendas novas palavras muito úteis na tua vida futura. Um dicionário
monolingue de português também dava jeito.» No entanto, como temo não ser
entendida, vou traduzir: «Garino, meu: bué de filmes! Essas cenas são brutais!
Aulas – estás a ver? – só um coche, ficam bem no emprego da malta, ok? Um
calhamaço de palavras de sete e meio é que era do caraças!»